A cadelinha, magricelas, quase só faro em focinho pontiagudo diligente, fina e galga, apanhou o vício da caça juntamente com o leite materno. Já sua mãe era afamada, nas bocas dos caçadores das redondezas, estava-lhe no sangue aquele destino, era viciada, doente mesmo e se farejava o rasto de coelhos esquecia o mundo.
Via-se a magreza em costelas, desenhadas em esqueleto, debaixo da toalha engelhada de pele, coberta por pêlo escaço e espetado sempre lavado pelo orvalho e penteado pelos matos e restolhos, pois onde passasse a cabeça a cadelinha metia o corpo furão. Riscava os matos, em correrias sem destino que pareciam desenhos tontos, de lápis que brinca em mãozinha de criança enquanto vai rabiscando alegria e espanto.
Compelida, pelo instinto, e persuadida pelo vício, nem sentia a fome ou a secura na pouca baba, pois, alimentava-se naquela cegueira cintilante.
Se o seu dono caçador não se resolvia, porque era defeso ou ainda porque tinha outras vidas, ficava inquieta, levantava-se e andava logo pela madrugada, de roda na cama a desenhar remoinhos sem conseguir deitar-se. Mantinha-se, naquele tentar, a fazer rodilha com o corpo todo, sobre as patas juntas em movimento de pião a chutar as palhas moídas da cama que com o tempo se faziam ninho no fundo das escaleiras.
Desistia da deita impaciente e olhava o céu estrelado que clareava. Retomava o bailado com a boca a fingir morder o rabo. O corpo esguio, arredondava-se de novo até ficar tonta, como remoinho em charco por onde a água foge da represa para seguir seu destino, mas nada, a cama tinha pulgas irrequietas em anseio.
Possuída por aquele desassossego, roçava-se nas pernas do seu dono, -- que pela manhã aparecia nas escaleiras em afazeres--, com o corpo todo roçava-se, para lá e para cá, como lançadeira nas mãos da tecedeira a fazer teia que até travava o passo, ainda dormente, do dono. O olhar do caçador descia acompanhando a mão aberta e a caçadora recebia afago carinhoso, por entre as orelhas vivas. Ouvia palavras parcas, próprias da aspereza da nossa gente de coração austero mas dócil.
Parava e levantava para ele a cabeça e o olhar melancólico e apelativo em desafio e chamamento a querer dizer se não vens vou eu só, ou, vou atrás da primeira espingarda que vir ou sentir.
Se o dono saía sobre rodas para longe, esquecia-se do conforto do lar e abalava para os montes. Sentia-se rejuvenescer de alegria a achar e a seguir… Amava aquela liberdade! Apesar de entender bem as maneiras do dono e as suas palavras de reprovação, não resistia, era uma tentação…
Mas, agora sentia-se um nada de nada, coisa nenhuma! Nunca tinha sentido assim uma trela tão aperrada e enraivecida em esticões asfixiantes que a degolavam num rojo de dor sufocante. Negava-se a mexer uma pata que fosse para seguir o símbolo e braço da autoridade dos homens: uma autoridade que se impõe de fora e não a que se aceita de dentro, a autoridade prepotente, a autoridade de um ou de poucos que recai sobre todos sem o seu consentimento e não a autoridade do exemplo que é uma autoridade justa e aceite por se entender necessária para o bem de todos.
Renegava aquela autoridade de um poder que quanto mais tinha mais queria. É esse o defeito do poder, porque nas sociedades tem que haver quem mande quem dirija mas com justiça, com respeito. Por isso preferia morrer ali, até a podiam matar que nunca diria quem era o caçador porque era uma cadela digna e leal.
O pulso que simulou blandícias, no início, passou a forte e bruto. Também o falar de mesurar passou a ameaças, insulto esbaforido em repelões e a cadelinha foi arrastada de rojo como cadáver moribundo porém, resistiu, aguentou estoicamente a dor, gemeu mas nem uma pata mexeu. O braço estava zangado, tinha repentes de raiva, e ela sentiu-se degolada.
Ficou como morta, de corpo abandonado em moleza desfalecida, na ponta da trela que era fiador da pistola.
Os cheiros de tudo que tinha captado,-- com os seus milhões de células recetoras de odores,-- catalogado e guardado na sua memória, pela vida fora, iam-se desvanecendo. Até aqueles sons que os homens não conseguem ouvir se apagavam em silêncio sepulcral. A sua vida era, agora, um suspiro ténue, só o cheiro de sua mãe se mantinha num fio fino em ternura protetora a não querer partir.
Degolada deixou de respirar e deixou de se sentir viva não distinguindo a realidade e o sonho e num adormecimento que desfalecia foi ficando tudo cada vez mais longínquo num afastamento que se diluía….
- Éih! Que é isso!? Quero a cadela viva! -Os seus olhos disparavam como aço que leva pancada violenta em bigorna.
-Desculpe, mas ela não anda de maneira nenhuma.
- Se não és capaz de a pôr a andar, dá-lhe colo. --Quedava-se, olhando um instante, de máscara severa e autoritária.
-Disse colo, meu comandante?
- Sim colo! Não sabes o que isso é? Retorquiu mostrando um olhar hirto e gelado.
-Está morta! Disse, a praça, em lamento que conviria para fugir ao vexame.
Aproximou-se, pareceu-lhe que ainda havia vida, baixou-se em busca de sinais e com o cromado espelhado da fivela do cinturão, encostado ao focinho, viu o efeito do vapor e sentenciou:
- Ainda respira! Já disse que quero a cadela viva! Acrescentou na certeza da sua esperteza. E acrescentou ainda em pensamento: Ei-de caçar esse tal Digo na toca. Regozijou-se num leve sorriso esboçado.
Não havia volta a dar: “ordens são ordens” e não se discutem! --Ser guarda é uma vida de cão, agora até tenho que levar a cadela ao colo. Assim, foi pensando e caminhando a praça Fidalga, --uma homonímia que resvala para a convocar no disfarce--, melindrada no seu orgulho de autoridade, a conter a raiva e a esmoer o descontentamento a cada passada.
(mo cont.)
DSLC
(Um pouco de nós para todos vós-- continua)
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