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    quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

    A Caçada, os cabelos e a linguagem do corpo e das palavras, dezembro 2014.

    Estremeceu ao ouvir o sonido da palavra domínio, que já vinha do principio dos tempos e só se foi esboroando com o início da emigração para a europa que permitia um vaivém "(em vacances)" que trazia nas cabeças outros mundos. Novas ideias começaram a passar as fronteiras sem que os fiscais as conseguissem reter ou encarcerar…

    Apareceu-lhe de novo a imagem da guarda, --que espalhava medo--, na sua cabeça, de onde verdadeiramente nunca tinha saído. Intrigado, exclamou, de si para si, com um leve mexer de lábios:

    -A guarda era sempre de temer. E a cadelinha ao colo? Essa trazia moscambilha!

    Mas uma voz ultravidente, vinda não se sabe de onde, segredou-lhe por uma talazinha do talambor numa aparente soniloquência:

    -A guarda ainda não mandava na chuva,( embora regesse a água dos rios, dos regos, dos poços e das nascentes...) e, por isso, também se recolhiam alhures para não molhar o uniforme.

    Olhou o além próximo e viu a chuva num último suspiro que parecia querer despedir-se, varrendo numa correnteza as redondezas. Corria uma névoa undífera esbranquiçada de gotículas pequeninas que bailavam, puxadas por ventos que pareciam não saber o caminho, semeada de onde em onde de pingas grossas que eram sentidas no corpo descoberto como pedradas. Pensou que se tivesse trazido a saca grande que ficou escondida na embelga de milho relva, onde tinha ao romper da aurora escondido a espingarda de olhares madrugadores, fazia um carapuço de aba, de uma água, estendida pelas costas abaixo até ao meio da perna, com um bico de meda no cocuruto da cabeça e fazia-se ao caminho.

    Então, amoleceu a vigilância e renasceu num remanescente de rememoramentos, daquele quadro feminino. Via avôs, mães, filhas e netas. Observava-as a folgar um “cibinho” num espreguiçar esticado a olhar o alto céu com olhos semicerrados à claridade intensa, enquanto as articulações respondiam aos estiramentos libertadores e reconfortantes com estalinhos rangidos. Desapertavam assim o corpo da posição a que esteve enfeixado e davam dois ou três passinhos garatuja parecidos com os das donzelas que se viam/vêm,-- num entusiasmo infantil--, com a música a escorrer-lhe, em gotas eletrizantes, pelo corpo ondulado em meneios de visco no bailarico do largo. Memória corporal feminina, que bailava, com desejo sensual de aconchegos correspondidos, a dar passinhos miúdos em balanços fervorosos, nervosos, a querer ir e a deixar-se levar. Alegria à solta a trautear o refrão da modinha que se repetia nos arraiais de verão. Era um engodo, um jogo de sedução, que logo se fazia desentendido se o corpo masculino, atrevido e temeroso, que simulava aproximar-se, a querer colo, não lhe servia o desejo e os segredos mais íntimos de seus sonhos....

    Mas havia que recomeçar, retomavam a posição de reza repetindo gestos: esfrega, torce e retorce até os punhos bulharem irmanados, num frente a frente apressado encavalitado e retorcido. Destroce, agora, desfolha estende, molha e bate, num bater compassado, para melhor desprender o surro encardido. Lavavam horas a fio , se necessário fosse, ao serviço da vasta prole. Por vezes cantarolavam, uma espécie de reza chorada alegre, melodias populares e, se foram juntas regressavam irmanadas. Porém, se alguma se retardasse porque conversou mais ou tinha um monte maior davam uma mão solidária e tudo se lavava a tempo de regressaram carregadas, numa romaria arrastada, felizes até pelo contágio da limpeza purificadora.

    Terminada a lida arranjavam-se, como senhoras e pelames, tiravam os farrapos ou as sacas velhas que tinham enrolado em barra em volta da cintura para que a água só ficasse pelo umbigo ainda que a frescura fosse sentida mais além. Compunham-se e miravam-se mutuamente!

    Os cabelos das senhoras e meninas enchiam-se de cuidados "até cinza lhe botabam, depois lababam-nos bem labadinhos com água de erbas cheirosas". Nos homens e rapazes a tonsura era feita" à maneira de arranca terrão e ficava feito o serviço por uns tempos largos". Uns cabelos compridos e sedosos eram o espelho do asseio.

    Ajeitavam o poupo com as duas mãos acima da cabeça numa ligeireza corporal e, por um instante, os seios dos ganchos de tartaruga ou de arame viam-se mordidos na pontinha, à vez, por dentes torquês.

    E, já agora, por falar em seios, melhor peitos, as mulheres daqueles tempos em relação às dos nossos dias eram desafortunadas. Disseram-me num banco de pedra falante, ao sol morno, em dia de descanso:

    "--Sabe uma coisa no nosso tempo havia mulheres que só tinham um peito!"

    --Como assim! Só tinham um peito?

    "--Só um, pobrezinhas! Era uma tristeza não lhe parece!?"

    --Ah! Esparrela de quem já viveu muito! Seria por isso que se vestiam até ao pescoço?

    "--Agora têm três!"

    --Três?

    "-- O senhor num bê que num pegam dois! E nesses dois aparece sempre um que quer pegar ... e elas aos pouquinhos lá vão deixando e aqui estamos nós... "

    -- Agora faz sentido! As palavras onde mais se expandem é no que sugerem quando se encolhem!

    "....Os ganchos de arame tinham, duas pontas e metia-se a asa nos ouvidos de roda para tirar a saramela... Os cabelos era uma coisa muito importante numa mulher mas dava-lhe uma trabalheira do diacho para catar os piolhos e as lêndeas, tinham que se sentar acocoradas, com tempo, numa banquinha ao sol.

    Sabe os cabelos tinham coisa!

    Os rapazes iam para as festas de longe onde não fossem conhecidos, sem conhecer as moças, mas pelo cabelo ficavam a saber quais eram as ricas e as pobres quer dizer as que tinham carro e junta em casa. As que não tinham carro tinham alguns cabelos cortados dos molhos da lenha, era cada carga, e depois soltavam-se do poupo ou da trança para cima dos olhos uma vez que eram mais curtos ".

    “Mas nos rapazes também se conheciam no corpo, amaduravam cedo demais sem botar pra alto e largo. Os rapazes que andavam sempre à jeira conheciam-se, se bem escutados, por causa da criação, tinham menos que rilhar. Era tudo pobre, estraga-se mais hoje cóque se comia antes. Eram quase todos piquenos, fraquixos, ainda nobos e já se queria formar a marreca até os braços já queriam fazer aduela de tanto andarem agarrados à enxada. Coitaditos até tinham mais cicatrizes, dos maus tratos e das agruras e esfoladelas da vida ..."

    A água tingida, por sabão artesanal que as lavadeiras faziam com borras de azeite, cinza e mais não se diz porque é segredo que já foi para a cova de sete palmos, saltava e escorria para o rego do lugar tingido por uma cor ruçada e azulada a formar tons cinzentos esbranquiçados, que permitiam seguir com o olhar o seu correr...

    A nossa memória acordou no mesmo instante em que a chuva parou. Surgiram grandes rasgões de algodão pelo céu fora onde passavam raios de luz parecidos com os que tinha visto em criança numa folhinha na catequese a irradiar de um coração.

    A preocupação voltou, recorreu em pensamento ao divino daquela imagem, mas continuou indeciso a sentir suores nervosos e, refletiu com a razão na vanguarda: se a chuva escondeu todo rasto feito, agora avivá-lo-ia e datá-lo-ia aos olhos dos guardas em pegadas sobre o pó colado do caminho. Chegar a casa tornou-se um problema, pois o rasto que agora fizesse iria dizer as horas ao pensamento dedutivo do cabo e dos outros.

    Os seus músculos foram ficando tensos, o coração acelerou dentro do peito e todo o corpo reagiu. A cabeça ficou enxame tonto em busca de cortiço, as mãos procuraram-se e espremeram-se ansiosas enquanto lançou um doesto à vida.

    Na testa surgiram duas ou três rugas pequeninas de preocupação. Mas, a divina providência deu-lhe a solução para continuar a pildar-se! O rego da água que nascia e corria debaixo dos seus pés a cumprir um propósito...

    (mo.continua)

    DSLC
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