Em elucubração foi-se arrastando
e, pelas maneiras da mulher percebeu que a guarda ainda não lhe tinha batido à
porta. Alquebrado observava-a: tinha uma coisa para lhe dizer e para não lhe
dizer. Não disse. Mas, como já se disse, ela percebeu que havia coisa, sem
saber, ao certo, que coisa era.
No meio da cozinha ainda
tentou esboçar um tartamudear. Quereria coser-se no escano como se nada fosse e,
ali repousar esparralhado como usualmente fazia depois da ceia. Quedar-se
embrulhado em pensamentos agradáveis, a receber o calor da fogueira, contemplando
os desenhos ferventes, da rezina a esvurmar dos nós do tarolo enrugado.
Não fora aquela freima e deixaria
desfalecer o corpo todo em morrinha. Porém, num salto picado, foi espreitar
apressado a rua por uma fresta do postigo, nada viu a não ser uns ouriços de poeiras
e ciscos que o vento levantava, soprava e rebolava na eira bem à frente dos
seus olhos. O pequeno pulverinho, a fazer e a desfazer novelos reboludos, foi
entendido como mau presságio.
Se foi num passo, regressou
noutro, mas mais nervoso ainda. Por momentos parecia possuído por catatonia,
tal era a intensidade da indecisão. Como caçador experiente sopesou o perigo
sabia que as lebres, que até dormem de olhos abertos e correm mais que galgos,
são fáceis de apanhar na cama...
Ouviram-se badaladas o sino,
no seu pináculo, ressoava em chamamento. Por entre o eco que varria o povoado,
e se desvanecia ao longe nos campos sem fim, uma ideia convicta, percorrendo
caminhos incertos, emergiu.
Concluiu que tinha que sair
de casa quanto antes: pensou-o sem o dizer -- e continuou-- "isso não! O
que seria da cabeça dos pequenos se eles me botam as unhas e me levam a ferros,
com eles a ver. Como ficariam as cabecitas tenras de vida?...Demoram-se, foram
pela certa chamar o regedor para me amolarem "-- foi conjeturando--"
estou encalacrado tantos trabalhos para chegar aqui e agora o melhor é
raspar-me de casa. Há dias do diacho, que repeso estou de me ter levantado com
a alva por causa dos laparotos. "
Ainda ouvia o som do sino a
ressoar na sua cabeça em desfalecimento para a serenidade. Decidido
aproximou-se da mulher
--Vou à missa mulher. disse
num tom lacunar. -- Vou à missa! Repetiu desentendido para que todos ouvissem.
--Não vais assim! Tens que
ir adomingado que a vergonha é minha.
Acompanhou-a.
--Vais à missa? Segredou a
mulher.
--Sim é isso que respondes
se alguém perguntar por mim! Seja quem for! Segredou-lhe de novo e continuaram
aquelas conversas quase só de semblante e manifesto.
--Que se passa homem? Diz-me
por Deus!
--Hoje de manhã só fui regar
a horta! Não te apoquentes mulher, deixa isso comigo, que tudo se vai resolver,
e, faz o que eu te disse! Nem mais nem menos.
Deu-lhe roupa lavada.
Deixou ficar a boina no
prego: o chapéu acrescentava respeito e alguns dedos na altura.
--Aferrolha-me as crianças
que tenho que ir ao quinteiro!
Arrebanhou e enfiou a que tinha
trazido, como leitugas numa saca velha, e desceu, -- enquanto a mulher aferrolhava
os rebentos com palavras de intuito e controlo:
--Ouvi barulho. Ide
espreitar ao postigo e dizei-me, de lá, quem vai a passar na rua. Ide, Ide!
-- Oh mãe! Oh Mãe! São as
sinhoras na rua. Não lhes respondeu. Isso já ela sabia ao ouvir o cantar compassado
e arrastado de socas.
Juntou-se-lhe. Viu as
mulheres, que se dirigiam aos pares e em pequenos grupos, como romeiras em
peregrinação. Algumas vestiam de luto porque as maleitas lhe tinha ceifado os filhos
ou até os maridos e, ali ficou a pensar no seu.
O que seria dela se ele lhe
faltasse com aquela braçada de filhos à sua volta, como tufo de míscaros ou
jarra -- em bandeja redonda, rodeada de copos pequenos, cintilantes da barrela
da cinza, levados para uma demolha dos que pisavam uvas no lagar de pedras, de
casa rica, compridas com grampos de ferro nas esquinas do lajedo.
Pensativa, com a força do
sentimento que tudo ampara, recolheu uns farrapitos de passado, que eram
buracos de tempo no estendal da memória e, afagou-lhes as cabeças carinhosamente.
Assim continuou a amar só por amor -- um amor tão verdadeiro que nem usa os
paveses das palavras.
O homem, agora agricultor, deitou
a mão ao cabo de carrasco rijo dos velhos ganchos de herança, que estavam ali
dependurados no lenheiro numa trave falsa e foi, sem demora, a um canto do
quinteiro, onde o burro meditava dócil e dolente enquanto pensava na vida que
levava e agradecia o descanso do domingo.
A um aceno de sombra, de
cabo no ar sobre as orelhas, afastou-se a encolher o lombo à espera de pancada
que não caiu.
No espaço livre cavou com
ligeireza, sem forçar na tração o chicote do arco dos guiços que lhe podiam cuspir
de sujidade a roupa limpa. Enterrou a velha saca debaixo do estrume pastoso e
mal cheiroso, a fazer-se esterco.
Na sua cabeça temia que os
guardas tredos viesse, até em cambalacho com o regedor, e lhe entrassem pela modesta
casa dentro de roldão ou então, sorrateiros e matreiros com palavras mansas de
engodo se aproximassem como quem pesca à cata de provas. Estiveram quase a botar-lhe
a mão e viram, pela certa, o que trazia no corpo.
Logo que se afastou o
esperto do burro voltou a pôr o corpo à sombra e continuou com os cascos em
sopeiam -- cepo em mãos de calceteiro ao ritmo das ferroadas das moscas que lhe
poisavam nos eczemas da velhice que lhe medalhavam as patas. Ficou-se num alça
e bate instintivo e inglório a melhorar o esconderijo.
Afastou-se, em passos
suaves, olhando para trás a conferir o disfarce. Pareceu-lhe bem.
No fundo das escaleiras
largou os socos abertos e calçou uns sapatos espanhóis de couro fino que tinha
trazido.
Passou as mãos na pia,
bebedouro das galinhas, e esfregou-as uma na outra. Mirou-as com olhar de
pescoço de ave, levou as pontas dos dedos a beber de novo para lavar o surro persistente
das pregas rugosas. Secou-as num bater de pratos de filarmónica de braços
hirtos a fugir da fatiota.
Resoluto voltou as costas à
obra feita matutando: "Mal será que se lembrem de esgravatar no esterco!? Eu
bem sabia onde ficava bem escondido! Era na do reco, mas ele é um fução, punha
tudo a descoberto num esfregar de olhos, focinho!"
Saiu para a rua a esconder
as vibrações de ansiedade fingindo toda a naturalidade de quem só vai à missa,
mas por dentro sentia um inferno em ebulição, rastro de aflição e temor. Podendo,
transformava-se em lebre acossada por matilha de galgos e corria, como na
juventude, para bem longe da lei dos homens.
Ainda levantou o olhar
escondido e, por de baixo da aba do chapéu viu em recorte o retrato da mulher
no caixilho do postigo, que assim ficou num tremer imóvel até o ver passar no
salvador: carreiro de pé enxuto feito durante as invernias na barreira do
caminho das lamas e das águas que já vinham encaminhadas, até pelo relevo, ali
atravessar.
Esfumou-se-lhe o homem do
olhar ao entrar no casario de pedra do Rio então, num olhar de coração,
meteu-os a todos no mesmo abraço de aflição e carinho e ficou-se amarrada ao
postigo por pensamentos tensos que a não deixavam desfivelar. Num último olhar
puxou a torre alva da igreja para si, que figurava mais alta que tudo, e rezou
uma prece salvífica.
(mo cont.)
DSLC
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