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    quinta-feira, 27 de agosto de 2015

    A caçada, o lar não era o melhor lugar, julho/agosto 2015

    Em elucubração foi-se arrastando e, pelas maneiras da mulher percebeu que a guarda ainda não lhe tinha batido à porta. Alquebrado observava-a: tinha uma coisa para lhe dizer e para não lhe dizer. Não disse. Mas, como já se disse, ela percebeu que havia coisa, sem saber, ao certo, que coisa era.
    No meio da cozinha ainda tentou esboçar um tartamudear. Quereria coser-se no escano como se nada fosse e, ali repousar esparralhado como usualmente fazia depois da ceia. Quedar-se embrulhado em pensamentos agradáveis, a receber o calor da fogueira, contemplando os desenhos ferventes, da rezina a esvurmar dos nós do tarolo enrugado.
    Não fora aquela freima e deixaria desfalecer o corpo todo em morrinha. Porém, num salto picado, foi espreitar apressado a rua por uma fresta do postigo, nada viu a não ser uns ouriços de poeiras e ciscos que o vento levantava, soprava e rebolava na eira bem à frente dos seus olhos. O pequeno pulverinho, a fazer e a desfazer novelos reboludos, foi entendido como mau presságio.
    Se foi num passo, regressou noutro, mas mais nervoso ainda. Por momentos parecia possuído por catatonia, tal era a intensidade da indecisão. Como caçador experiente sopesou o perigo sabia que as lebres, que até dormem de olhos abertos e correm mais que galgos, são fáceis de apanhar na cama...
    Ouviram-se badaladas o sino, no seu pináculo, ressoava em chamamento. Por entre o eco que varria o povoado, e se desvanecia ao longe nos campos sem fim, uma ideia convicta, percorrendo caminhos incertos, emergiu.
    Concluiu que tinha que sair de casa quanto antes: pensou-o sem o dizer -- e continuou-- "isso não! O que seria da cabeça dos pequenos se eles me botam as unhas e me levam a ferros, com eles a ver. Como ficariam as cabecitas tenras de vida?...Demoram-se, foram pela certa chamar o regedor para me amolarem "-- foi conjeturando--" estou encalacrado tantos trabalhos para chegar aqui e agora o melhor é raspar-me de casa. Há dias do diacho, que repeso estou de me ter levantado com a alva por causa dos laparotos. "
    Ainda ouvia o som do sino a ressoar na sua cabeça em desfalecimento para a serenidade. Decidido aproximou-se da mulher
    --Vou à missa mulher. disse num tom lacunar. -- Vou à missa! Repetiu desentendido para que todos ouvissem.
    --Não vais assim! Tens que ir adomingado que a vergonha é minha.
    Acompanhou-a.
    --Vais à missa? Segredou a mulher.
    --Sim é isso que respondes se alguém perguntar por mim! Seja quem for! Segredou-lhe de novo e continuaram aquelas conversas quase só de semblante e manifesto.
    --Que se passa homem? Diz-me por Deus!
    --Hoje de manhã só fui regar a horta! Não te apoquentes mulher, deixa isso comigo, que tudo se vai resolver, e, faz o que eu te disse! Nem mais nem menos.
    Deu-lhe roupa lavada.
    Deixou ficar a boina no prego: o chapéu acrescentava respeito e alguns dedos na altura.
    --Aferrolha-me as crianças que tenho que ir ao quinteiro!
    Arrebanhou e enfiou a que tinha trazido, como leitugas numa saca velha, e desceu, -- enquanto a mulher aferrolhava os rebentos com palavras de intuito e controlo:
    --Ouvi barulho. Ide espreitar ao postigo e dizei-me, de lá, quem vai a passar na rua. Ide, Ide!
    -- Oh mãe! Oh Mãe! São as sinhoras na rua. Não lhes respondeu. Isso já ela sabia ao ouvir o cantar compassado e arrastado de socas.
    Juntou-se-lhe. Viu as mulheres, que se dirigiam aos pares e em pequenos grupos, como romeiras em peregrinação. Algumas vestiam de luto porque as maleitas lhe tinha ceifado os filhos ou até os maridos e, ali ficou a pensar no seu.
    O que seria dela se ele lhe faltasse com aquela braçada de filhos à sua volta, como tufo de míscaros ou jarra -- em bandeja redonda, rodeada de copos pequenos, cintilantes da barrela da cinza, levados para uma demolha dos que pisavam uvas no lagar de pedras, de casa rica, compridas com grampos de ferro nas esquinas do lajedo.

    Pensativa, com a força do sentimento que tudo ampara, recolheu uns farrapitos de passado, que eram buracos de tempo no estendal da memória e, afagou-lhes as cabeças carinhosamente. Assim continuou a amar só por amor -- um amor tão verdadeiro que nem usa os paveses das palavras.

    O homem, agora agricultor, deitou a mão ao cabo de carrasco rijo dos velhos ganchos de herança, que estavam ali dependurados no lenheiro numa trave falsa e foi, sem demora, a um canto do quinteiro, onde o burro meditava dócil e dolente enquanto pensava na vida que levava e agradecia o descanso do domingo.
    A um aceno de sombra, de cabo no ar sobre as orelhas, afastou-se a encolher o lombo à espera de pancada que não caiu.
    No espaço livre cavou com ligeireza, sem forçar na tração o chicote do arco dos guiços que lhe podiam cuspir de sujidade a roupa limpa. Enterrou a velha saca debaixo do estrume pastoso e mal cheiroso, a fazer-se esterco.
    Na sua cabeça temia que os guardas tredos viesse, até em cambalacho com o regedor, e lhe entrassem pela modesta casa dentro de roldão ou então, sorrateiros e matreiros com palavras mansas de engodo se aproximassem como quem pesca à cata de provas. Estiveram quase a botar-lhe a mão e viram, pela certa, o que trazia no corpo.
    Logo que se afastou o esperto do burro voltou a pôr o corpo à sombra e continuou com os cascos em sopeiam -- cepo em mãos de calceteiro ao ritmo das ferroadas das moscas que lhe poisavam nos eczemas da velhice que lhe medalhavam as patas. Ficou-se num alça e bate instintivo e inglório a melhorar o esconderijo.
    Afastou-se, em passos suaves, olhando para trás a conferir o disfarce. Pareceu-lhe bem.
    No fundo das escaleiras largou os socos abertos e calçou uns sapatos espanhóis de couro fino que tinha trazido.
    Passou as mãos na pia, bebedouro das galinhas, e esfregou-as uma na outra. Mirou-as com olhar de pescoço de ave, levou as pontas dos dedos a beber de novo para lavar o surro persistente das pregas rugosas. Secou-as num bater de pratos de filarmónica de braços hirtos a fugir da fatiota.
    Resoluto voltou as costas à obra feita matutando: "Mal será que se lembrem de esgravatar no esterco!? Eu bem sabia onde ficava bem escondido! Era na do reco, mas ele é um fução, punha tudo a descoberto num esfregar de olhos, focinho!"
    Saiu para a rua a esconder as vibrações de ansiedade fingindo toda a naturalidade de quem só vai à missa, mas por dentro sentia um inferno em ebulição, rastro de aflição e temor. Podendo, transformava-se em lebre acossada por matilha de galgos e corria, como na juventude, para bem longe da lei dos homens.
    Ainda levantou o olhar escondido e, por de baixo da aba do chapéu viu em recorte o retrato da mulher no caixilho do postigo, que assim ficou num tremer imóvel até o ver passar no salvador: carreiro de pé enxuto feito durante as invernias na barreira do caminho das lamas e das águas que já vinham encaminhadas, até pelo relevo, ali atravessar.
    Esfumou-se-lhe o homem do olhar ao entrar no casario de pedra do Rio então, num olhar de coração, meteu-os a todos no mesmo abraço de aflição e carinho e ficou-se amarrada ao postigo por pensamentos tensos que a não deixavam desfivelar. Num último olhar puxou a torre alva da igreja para si, que figurava mais alta que tudo, e rezou uma prece salvífica.

    (mo cont.)

    DSLC
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