A sementeira feita no coração dos outros é uma sementeira frutuosa,
pura e bela, transforma-se num bem que germina até ao fim dos tempos. Como
seria belo um mundo onde só florisse o bem!
Mas, neste mundo, não existe tal morada, o mal dissimula-se em
dormência e quando menos se espera revela-se abruptamente e agiganta-se
brutamente. A voz à sombra que fala:
-- Se a natureza, a um primeiro olhar, nos recomenda o bem,
na experiência da vida vivida não deixa de acrescentar o mal, um chapiceiro,
coisas do arco-da-velha! Olha a rosa!? A flor mais perfeita, que gastou toda a
sua vontade e querer para ser o que há de mais belo, mas como bez não dá fruto
só borboto. O belo, o puro, têm um preço muito elevado. Che! E, se lhe pegas
sem cuidados sentes os espinhos. Quis assim a natureza pôr o bem ao pé do mal
para que um amarre e testemunha-se o valor do outro. Disse a Sombra Falante e
acrescentou:
-- O Amor, o maior bem do mundo, e o Ódio, o maior mal, que
são o resumo de todos os sentimentos, não se conseguem desenguiçar, vivem paredes
meias.
Calou-se. Calaram-se. Os homens sempre se calam quando as mulheres
passam e elas passavam. Saudaram-se como era recomendado pela boa educação
daqueles tempos.
Ficaram silêncios a dar corda aos pensamentos espelhados nos
olhares alegria que revisitavam memórias felizes, quase sempre de momentos
fungíveis, num agravar de saudades. Elas adivinhavam-lhos e segredaram a seguir
destino.
Mais um passo, voltou-se para trás e encostou-se por um
instante, à parede a aguardar a aproximação da da Sombra Falante a quem o falar
e o arfar roubavam desembaraço.
A esquina prumada de xisto alinhou-lhe na contraluz a mirada
e o que viu escacholou-lhe tudo. A atenção ficou presa em cuidados, segou-o e
ensurdeceu-o por momentos: deixou de ver a sombra amiga, que seguia um passo
atrás, vendo-a. Deixou de a ouvir, ouvindo-a. Tanto pode a força do pensamento que
até de olhos abertos nada mais se vê. Com os pensamentos a roerem-lhe o coração,
desencostou-se e afastou-se sem pronunciar sentido.
-- A Guarda além… fugiu-lhe num tartamudear quase mudo.
Tinha visto a Guarda, de passos apressados e resolutos escorrendo
do Banho. Sombras de cotim pelas cortinhas, pequenos socalcos -- de terra e
pedras a amparar as hortas--, desenhados linhas verde das videiras aramadas. O
braço da lei acercava-se do ninho dos seus. Atormentou-se. Grano-lhos de
imaginação aflita perturbavam-no. Era todo incerteza a jungir pensamentos que o
compungiam.
-- Disseste a Guarda. Repetiu quase em arremedo a Sombra
Falante. A própria Guarda—continuou sem fugir ao tema-- é um bem, quando vem salvar
os que estão em perigo e gritam: “Ó da Guarda”; porém é um mal para os que
persegue quando estes a veem. É como tudo, só precisamos das coisas quando nos
fazem préstimo. A vida sempre nos mucheta onde mais nos dói.
Usava desapressado palavras paciência e, ainda esteve para lhe
contar uma história sobre um caçador que tinha sido perseguido pela guarda e
que se foi esconder no cemitério…, mas foi-se calando ao pressupor e pressentir
o estado de alma do amigo. Continuando sentia-se a falar sozinho e, falar só, diz
o povo, que é “falar com diabo” e aquele dia era santo.
-- Vou andando que a missa deve estar quase a partir… dizendo
o pouco que disse quebrou aquela corda, de palavras e atenção, que sempre amarra
quem caminha lado a lado e foi-se a buscar quietação.
-- Vai, vai, que eu, nas minhas calmas, espero por ti. A mim
a correr ninguém me apanha! Quis brincar a Sombra, mas já não teve ouvidos que
lhe respondessem. Deixou-o ir porque a vida, onde a ciência sem experiência de
pouco serve, lhe ensinara que é o último grão que enche a rasa e a última gota
que faz transbordar o almude. Com mais dois passos esforçados o seu olhar
começou a cortar cabeças, no primeiro, depois troncos até varrer o terraço do
largo de canto a canto.
O caçador no defeso seguia na contraencosta, com olhar
monóculo, os movimentos das três autoridades a arregimentaram-se. Muito
gostaria de ouvir o que diziam. O que magicava o Cabo?
O cabo sem delongas disse:
Vamos! Andar! Só os dois guardas ouviram.
E, olhando para o jovem e vigoroso guarda ordenou:
--Agora leva tu a cadela. A Finura da Magreza, sabendo o que
era, ouviu e, insegura lançou uns curtos gemidos latidos, aguçados e clementes.
Os guardas nada disseram, acercavam-se com intento do bairro
Novinho. A Finura da Magreza, não se apercebeu da ação que se passou acima do
seu lombo e de supetão já suportava a pressa, de quem a arrastava na tenção do
fiador trela. Sentiu-se nas mãos do jovem guarda que caminhava cheio de
certezas. E, convicções empertigadas podem ser um perigo na mão de quem tem
poder e pouco sabe da vida.
As patitas dianteiras, da Finura, suspendiam-se de onde em
onde, nas guinadas do rumo, em pequeninos voos esganados.
Sempre de passo estugado o Cabo Costa resmungava a ausência
do Regedor enquanto descrevia o plano à parelha que o ouvia com ouvidos de reverência
e boca que não ousa. Era torto que nem um arrocho no mando, mas direito como um
fuso na compleição todo sedutor e bem-parecido no dizer delas.
--Tu parece que vais com pena do fugitivo? Mas ouve bem,
amarras-te nas traseiras de fúsil na unha não é para o deixares raspar-se, caso
contrário vais-te arrepender para o resto da tua vida! Entendido!
O complacente e paciente guarda tudo ouvia e tudo pensava na
sua introspeção. Pelos seus pensamentos passavam outros mundos, via e sentia
coisas, que o Cabo nem supunha que existissem. Sentimentos que só se podem ver
na experiência sofrida no tempo. Filhas de uma outra lei, a lei natural
inscrita no coração de todos os homens com a qual se distingue o bem do mal. Lei
essa que nos ordena que devemos praticar o primeiro e repudiar o segundo. Viver
é, a cada passo e pensamento, percorrer um carreiro purificador, de estreitas
margens, que nos encaminha numa aprendizagem repleta de significados, que uma
boa consciência testemunha e, por essa via, um coração honrado sente a paga de
ter feito o que devia.
Sentir que se faz o que se deve é receber a maior e mais pura
paga do mundo. Quando se sabe que tudo o que se constrói sobre a injustiça,
nunca será perene.
Porém há homens, ao que parece, que não alimentam no seu
íntimo, esse sentido espiritual do universo ou, não têm inteligência para o
decifrar na sua plenitude ou ainda, foram, são e serão de coração negligente
quando percorrem os caminhos da existência.
--Quanto a ti não
sejas bruto com o bicho que já falta pouco e não a queremos assustadiça, porque
a cadela é a esparrela do meu plano para apanhar o Tralhão (Taralhão), ou ainda
não perceberam isso? Vai ser ela que nos vai trazer à mão, que nem um anjinho,
aquela raposa matreira e mais ligeira que um raio.
--Nós vamos pela frente com toda a naturalidade do mundo
desejar-lhe um bom dia. "Não é com vinagre que se apanham as moscas!".
O guarda que ia cobrir as traseiras, sem apressar o passo,
ganhou uma pequena dianteira.
Não ouvia barulhos vindos de dentro, o seu silêncio era
interrompido pelos seus pensamentos que borbulhavam e logo se sumiam.
O cabo e o outro Guarda já com a porta de serviço em linha de
vista abrandaram o passo, eram predadores silenciosos e astutos.
Mas, já estavam a ser observados, há algum tempo, por quem
estava dentro.
(mo. continua)
DSLC
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