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    sábado, 27 de fevereiro de 2016

    A Caçada, a Sombra que fala e o Guarda que sente, (Janeiro/ fevereiro 2016)



    A sementeira feita no coração dos outros é uma sementeira frutuosa, pura e bela, transforma-se num bem que germina até ao fim dos tempos. Como seria belo um mundo onde só florisse o bem!
    Mas, neste mundo, não existe tal morada, o mal dissimula-se em dormência e quando menos se espera revela-se abruptamente e agiganta-se brutamente. A voz à sombra que fala:
    -- Se a natureza, a um primeiro olhar, nos recomenda o bem, na experiência da vida vivida não deixa de acrescentar o mal, um chapiceiro, coisas do arco-da-velha! Olha a rosa!? A flor mais perfeita, que gastou toda a sua vontade e querer para ser o que há de mais belo, mas como bez não dá fruto só borboto. O belo, o puro, têm um preço muito elevado. Che! E, se lhe pegas sem cuidados sentes os espinhos. Quis assim a natureza pôr o bem ao pé do mal para que um amarre e testemunha-se o valor do outro. Disse a Sombra Falante e acrescentou:
    -- O Amor, o maior bem do mundo, e o Ódio, o maior mal, que são o resumo de todos os sentimentos, não se conseguem desenguiçar, vivem paredes meias.
    Calou-se. Calaram-se. Os homens sempre se calam quando as mulheres passam e elas passavam. Saudaram-se como era recomendado pela boa educação daqueles tempos.
    Ficaram silêncios a dar corda aos pensamentos espelhados nos olhares alegria que revisitavam memórias felizes, quase sempre de momentos fungíveis, num agravar de saudades. Elas adivinhavam-lhos e segredaram a seguir destino.
    Mais um passo, voltou-se para trás e encostou-se por um instante, à parede a aguardar a aproximação da da Sombra Falante a quem o falar e o arfar roubavam desembaraço.
    A esquina prumada de xisto alinhou-lhe na contraluz a mirada e o que viu escacholou-lhe tudo. A atenção ficou presa em cuidados, segou-o e ensurdeceu-o por momentos: deixou de ver a sombra amiga, que seguia um passo atrás, vendo-a. Deixou de a ouvir, ouvindo-a. Tanto pode a força do pensamento que até de olhos abertos nada mais se vê. Com os pensamentos a roerem-lhe o coração, desencostou-se e afastou-se sem pronunciar sentido.
    -- A Guarda além… fugiu-lhe num tartamudear quase mudo.
    Tinha visto a Guarda, de passos apressados e resolutos escorrendo do Banho. Sombras de cotim pelas cortinhas, pequenos socalcos -- de terra e pedras a amparar as hortas--, desenhados linhas verde das videiras aramadas. O braço da lei acercava-se do ninho dos seus. Atormentou-se. Grano-lhos de imaginação aflita perturbavam-no. Era todo incerteza a jungir pensamentos que o compungiam.
    -- Disseste a Guarda. Repetiu quase em arremedo a Sombra Falante. A própria Guarda—continuou sem fugir ao tema-- é um bem, quando vem salvar os que estão em perigo e gritam: “Ó da Guarda”; porém é um mal para os que persegue quando estes a veem. É como tudo, só precisamos das coisas quando nos fazem préstimo. A vida sempre nos mucheta onde mais nos dói.
    Usava desapressado palavras paciência e, ainda esteve para lhe contar uma história sobre um caçador que tinha sido perseguido pela guarda e que se foi esconder no cemitério…, mas foi-se calando ao pressupor e pressentir o estado de alma do amigo. Continuando sentia-se a falar sozinho e, falar só, diz o povo, que é “falar com diabo” e aquele dia era santo.
    -- Vou andando que a missa deve estar quase a partir… dizendo o pouco que disse quebrou aquela corda, de palavras e atenção, que sempre amarra quem caminha lado a lado e foi-se a buscar quietação.
    -- Vai, vai, que eu, nas minhas calmas, espero por ti. A mim a correr ninguém me apanha! Quis brincar a Sombra, mas já não teve ouvidos que lhe respondessem. Deixou-o ir porque a vida, onde a ciência sem experiência de pouco serve, lhe ensinara que é o último grão que enche a rasa e a última gota que faz transbordar o almude. Com mais dois passos esforçados o seu olhar começou a cortar cabeças, no primeiro, depois troncos até varrer o terraço do largo de canto a canto.
    O caçador no defeso seguia na contraencosta, com olhar monóculo, os movimentos das três autoridades a arregimentaram-se. Muito gostaria de ouvir o que diziam. O que magicava o Cabo?

    O cabo sem delongas disse:
    Vamos! Andar! Só os dois guardas ouviram.
    E, olhando para o jovem e vigoroso guarda ordenou:
    --Agora leva tu a cadela. A Finura da Magreza, sabendo o que era, ouviu e, insegura lançou uns curtos gemidos latidos, aguçados e clementes.
    Os guardas nada disseram, acercavam-se com intento do bairro Novinho. A Finura da Magreza, não se apercebeu da ação que se passou acima do seu lombo e de supetão já suportava a pressa, de quem a arrastava na tenção do fiador trela. Sentiu-se nas mãos do jovem guarda que caminhava cheio de certezas. E, convicções empertigadas podem ser um perigo na mão de quem tem poder e pouco sabe da vida.
    As patitas dianteiras, da Finura, suspendiam-se de onde em onde, nas guinadas do rumo, em pequeninos voos esganados.
    Sempre de passo estugado o Cabo Costa resmungava a ausência do Regedor enquanto descrevia o plano à parelha que o ouvia com ouvidos de reverência e boca que não ousa. Era torto que nem um arrocho no mando, mas direito como um fuso na compleição todo sedutor e bem-parecido no dizer delas.
    --Tu parece que vais com pena do fugitivo? Mas ouve bem, amarras-te nas traseiras de fúsil na unha não é para o deixares raspar-se, caso contrário vais-te arrepender para o resto da tua vida! Entendido!
    O complacente e paciente guarda tudo ouvia e tudo pensava na sua introspeção. Pelos seus pensamentos passavam outros mundos, via e sentia coisas, que o Cabo nem supunha que existissem. Sentimentos que só se podem ver na experiência sofrida no tempo. Filhas de uma outra lei, a lei natural inscrita no coração de todos os homens com a qual se distingue o bem do mal. Lei essa que nos ordena que devemos praticar o primeiro e repudiar o segundo. Viver é, a cada passo e pensamento, percorrer um carreiro purificador, de estreitas margens, que nos encaminha numa aprendizagem repleta de significados, que uma boa consciência testemunha e, por essa via, um coração honrado sente a paga de ter feito o que devia.
    Sentir que se faz o que se deve é receber a maior e mais pura paga do mundo. Quando se sabe que tudo o que se constrói sobre a injustiça, nunca será perene.

    Porém há homens, ao que parece, que não alimentam no seu íntimo, esse sentido espiritual do universo ou, não têm inteligência para o decifrar na sua plenitude ou ainda, foram, são e serão de coração negligente quando percorrem os caminhos da existência.

     --Quanto a ti não sejas bruto com o bicho que já falta pouco e não a queremos assustadiça, porque a cadela é a esparrela do meu plano para apanhar o Tralhão (Taralhão), ou ainda não perceberam isso? Vai ser ela que nos vai trazer à mão, que nem um anjinho, aquela raposa matreira e mais ligeira que um raio.
    --Nós vamos pela frente com toda a naturalidade do mundo desejar-lhe um bom dia. "Não é com vinagre que se apanham as moscas!".
    O guarda que ia cobrir as traseiras, sem apressar o passo, ganhou uma pequena dianteira.
    Não ouvia barulhos vindos de dentro, o seu silêncio era interrompido pelos seus pensamentos que borbulhavam e logo se sumiam.
    O cabo e o outro Guarda já com a porta de serviço em linha de vista abrandaram o passo, eram predadores silenciosos e astutos.
    Mas, já estavam a ser observados, há algum tempo, por quem estava dentro.
    (mo. continua)
    DSLC
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