O seu homem continuava estátua e
fadiga na escadaria do adro a pensar mundo. A devoção, o momento e a censura não
lhe permitiriam que desse as costas, sentando-se na segunda escaleira, à Igreja
já de portas abertas aos devotos. Pensava que a vida é nebulosa e incerta, os
sonhos morrem sem nascer na luz do dia e, os desejos se ficam sonhados, por
cumprir. Assim salva-nos o quimérico que nos atenua a dor com a esperança…
Vindo da porta do quinteiro a dona
da casa ouviu:
-- Solta a cadela! Solta-a!
O guarda cumpriu a ordem de
pronto e libertou a Finura da Magreza do fiador trela. Deu-lhe um empurrão
encorajador com a ponta da bota robusta, a puxar lustro, mantendo sempre uma
atitude intimidatória: carrancudo, nada loquaz, bisonho, era uma figura umbrosa.
A cadelita, sentindo a folga no
cerviz, rodopiou de cabeça no ar nas patitas traseiras. A parelha de autoridade,
concertada, formou lençol de braços caídos e pernas afastadas gesticulando como
quem arrebate gado estremalhado.
A Finura sentiu-se solta e
cercada! E, é sabido que quando o sofrimento bate fundo, atira-se com a
existência para longe em busca de alívio salvífico. Então insegura perorava: se
ao menos estivesse ali o dileto guarda!? Descansaria na sua amizade e
sensibilidade.
Era um daqueles homens que
parecia não ter idade; enterneciam-no um pequenino bicho que escondido
espreitava ou, corria em aflição para se esconder; uma pequenina florzinha
silvestre que era pecado cortar porque só ali embelezava o mundo todo;
Quando macambuzio observava todas
as minudências do mundo pintando com palavras vagarosas um quadro de esperança.
Prostrava-se em longos silêncios enquanto assinalava e sorvia, em êxtase, todos
os cheiros dos campos. Assim ficava desamparado no amparo dos seus pensamentos a
contemplar, sem pressas, as árvores floridas o adejar das abelhas sobre as
flores ou, um carreirinho de formigas laboriosas. Refletia profundamente sobre
o inusitado da vida enquanto sentia e emanava um olhar humilde, puro e cândido.
Navega, em si, um mundo interior dócil deslumbrado pela meditação que interrogava
o que é imenso, eterno, belo e inefável.
Por isso, nascia-lhe aquele
encanto carinhoso de criança quando protege no côvado, das mãozitas postas, uma
joaninha de cores vistosas que se quer livre. Assim como a criança ficava suspenso,
intrigado, a esbugalhar os olhos e o seu ser de mistério, no pedacinho de vida
que caminhava em cócegas na sua mão, agora aberta, com as duas antenas armadas para
sentir o cheiro e o gosto, enquanto se ia encarrapitando pelo dedo mais espetado
ao vento para da pontinha da falangeta, bem da pontinha, lançar o seu voejo
gracioso de liberdade colorida a pedir a lengalenga: “joaninha voa, voa…”.
Lengalenga que, como todas as
crianças da aldeia felizes, sabia de fio a pavio, de tanto lhe ser recontada e recantada
pela sua avó já velhinha de doçura que um dia, próximo da partida, o abraçou e lhe
confiou um segredo que devia revelar: “Nunca te esqueças que há muita beleza no
mundo para aqueles que sentem e sabem o onde e o quando destapar o olhar do coração”.
Por fim acordava daquela
existência interior e sentenciava: “são os animais e as plantas que nos ensinam
a ser pessoas melhores!”
Hesitante a finura deu duas
passadas deslocou-se uma; ter mais patas não significa andar mais a cada
passada.
O Cabo já esboçava um sorriso
mordaz e o guarda uma afoiteza impetuosa. Imaginavam-na, viam-na mesmo, a
saltar pelo quinteiro dentro e a galgar escadas acima. Mas logo, num repente,
ficou anichada, de rabo adoçado ao corpo, num atentismo extremo e medroso. Tinha
visto a gata ensonada, enroscada, imóvel, indiferente ao mundo, na pontinha do
beiral do telhado em pousio. Parecia medrar ao sol a bicha. Nem parecia a mesma
criatura!
Porém, ainda transportava boa
memória da má recordação, ainda sentia as dores das arranhadelas arrebanhadas;
golpes riscados na ponta do focinho e rasgões nas orelhas que ficaram retalhadas
a sangrar:
Uma bela tarde, pata ante pata,
entrou e foi despreocupada sentar-se, num farrapito de sombra, junto ao monte
de lenha inerte e dormente que acabava de secar, sem suspeitar o risco que
corria pois, vinha por bem em casa de gente de bem. Mas, em menos de um ai,
sentiu sobre o espinhaço um esgrimir de golpes de gata assanhada de unhas de
fora que lhe riparam o focinho. Nem tempo teve para reagir, raspou-se atarantada
e espavorida!
Mais tarde quis saber o motivo de
tal fereza e, à cautela, espreitou de longe. Mexericava no seu olhar inquiridor,
a furar e a tentar acrobacias nos galhos, uma ninhada que a mãe gata em
cuidados escondia. Percebeu a razão daquela bravura, estava parida e temia
pelos filhotes. Ali, na casa da vizinha, jurou que nunca mais entraria! Só
morta! Também sabia muito bem quem era o seu dono e onde era a sua casa, ao
contrário do Cabo que supunha erradamente.
-- Já para casa! Repetiam.
Repetiam. Mas, “nem chus nem mus”!
-- Vai ao dono! Continuavam.
Sempre a apertar-lhe a escapatória.
A finura da Magreza rastreava,
coagida, brechas de distração. Mas nada! E nisto, do nada, veio a ajuda. No
cimo das escaleiras de pedra a dona da casa proferiu:
-- Se querem que ela vá para casa
não a podem apertar os bichos, cercados não pensam!
-- Logo que ela entre vamos atrás
dela!
-- E porque carga de água é que
ela entraria! Exclamou a mulher, num tom corajoso, atirando palavras afiadas
como setas da aljava.
A Finura da Magreza sentiu parte
da atenção do Cabo ocupada, mesmo assim percebeu que para fugir podia ter que
escolher a dor. Fingiu que ia entrar e num repente, a querer voar, rodopiou. Zás!
Saltou que nem uma flecha de arco estirado a não poder mais. Voou, adelgaçou-se,
encolheu ainda mais o seu magro corpo e esquivou-se veloz, por entre a tesoura
das pernas do Cabo que lhe fez um pontapé impiedoso, mas atabalhoado. Falhou de
tanto querer!
O bicho correu, correu até cansar.
Já lá ia segura da sua liberdade. Parou de chofre, olhou para trás e fez mesmo
ali: escorreram pingadas duas ou três pequenas gotas nervosas nas barbas dos olhos
dos guardas que espreitavam em desalento. Sacudiu do corpo todo o medo e
sumiu-se, pelo portelo das hortas, até se fazer um ponto minúsculo no além…
O Cabo amargurado sentiu
esquírola estentórea perfurar-lhe o orgulho e a vaidade. A sua cabeça, em
braseiro, ficou inçada de dúvidas, chofraram surdas palavras, ressíbilaram
frases curtas que, de tão impróprias, não foram lançadas ao julgamento público.
De rosto laivado de rubor danou-se ao ver derruir assim o seu plano de levar o
caçador furtivo ao calabouço!
As pernas da mulher, dona da
casa, desfaleceram, o corpo exausto deixou-se cair sobre o velho banco da
varanda em desalinho. A gata que tudo viu, espreguiçou-se e usando o banzo,
onde afiou as unhas, desceu do telhado, com a elegância que só as gatas possuem,
e foi ronronar carinho fofo nas pernas e no avental. Roçou e ronronou até que a
dona lhe poisou docemente a mão na cabeça, arrastando-a depois pelo lombo fora até
ao rabo alçado. Com um olhar ensimesmado, a refazer-se do susto, juntou à carícia
um desabafo: “não foras tu uma mãe extremosa, por Deus querer, e, ainda tínhamos
a guarda esfuziada e vingativa portas a dentro”.
O caçador furtivo, agora devoto,
sem conhecer o desfecho, entrou na igreja de luz rarefeita onde as velas
cintilavam santidade, fletiu levemente um joelho e fez o sinal da cruz.
À distância de umas paredes
meeiras também a Finura da Magreza, à cautela, entrava sem demora para a sua
querença, pelo estreito buraco do gato, ora esgravatando e escorregando, ora espremendo-se
e esticando-se, sobre o chão térreo, como uma enguia que se escapa.
Sem palavras o Cabo empachoso
afastou-se, do lugar, prometendo que o malandro não perderia pela demora e jurou
perante o símbolo, dos botões cromados da farda, que um dia a raposa matreira,
cairia no seu laço e ficaria a saber como eram pesadas as grilhetas da lei. Os guardas
em silêncio colocaram as armas à bandoleira, arregimentaram-se imbuídos de
acatamento e humildade, seguiam o Cabo que caminhava, de pistola no coldre, agastado
por ter perdido a contenda e ver assim os seus intentos esgarçados,
Desceram no fundo do povo pelo
Alvaredo apanharam a estrada rompida, no sentido das poucas águas que corriam na
ribeira, sempre num mutismo extremo. Porém, no dealbar da alvura das guardas graníticas
da ponte, que vieram de longe, o bondoso e astuto guarda, que pensava sempre o
amanhã por saber que o mundo sempre continuará, soltou levemente os pulmões,
enquanto respirava, e, do silêncio lançou duas palavras, sorrateiras e moles,
para fazer esquecer o revés e, entreter conversa distraída.
Opinou qualquer coisa sobre o
tempo e os renovos dos campos circundantes. Assim salvou a patrulha do carrego
de frustração que o insucesso sempre engendra.
Continuaram, mas agora já outros,
a calcorrear os caminhos e os atalhos que os levassem à Vila, ao seu Posto.
Abandonaram o termo, volveu a paz
àquele mundo onde a marcha do tempo seguia os ritmos do ciclo anual da natureza
aclarados pelas lavras das decruas, pelas sementeiras e seus cuidados, pela
floração colorida dos campos e pelo despontar dos rebentos verdejantes e, por
fim, pelas colheitas que sempre guardavam sementes, --ouro--, que irão renascer.
Ps.: tinha decorrido um ano de
colheitas ou mais, até que um dia, numa ronda, o Cabo viu com surpresa do largo
da Freiria, em cima da parede de um pátio fronteiro a Finura da Magreza refastelada,
na segurança do lar a dormitar. Só aí entendeu o fradaço e compreendeu o engano
tido!
(mo. fim)
DSLC
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