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    segunda-feira, 4 de julho de 2016

    A Caçada, o desfecho do logro, maio/junho 2016



    O seu homem continuava estátua e fadiga na escadaria do adro a pensar mundo. A devoção, o momento e a censura não lhe permitiriam que desse as costas, sentando-se na segunda escaleira, à Igreja já de portas abertas aos devotos. Pensava que a vida é nebulosa e incerta, os sonhos morrem sem nascer na luz do dia e, os desejos se ficam sonhados, por cumprir. Assim salva-nos o quimérico que nos atenua a dor com a esperança…
    Vindo da porta do quinteiro a dona da casa ouviu:
    -- Solta a cadela! Solta-a!
    O guarda cumpriu a ordem de pronto e libertou a Finura da Magreza do fiador trela. Deu-lhe um empurrão encorajador com a ponta da bota robusta, a puxar lustro, mantendo sempre uma atitude intimidatória: carrancudo, nada loquaz, bisonho, era uma figura umbrosa.
    A cadelita, sentindo a folga no cerviz, rodopiou de cabeça no ar nas patitas traseiras. A parelha de autoridade, concertada, formou lençol de braços caídos e pernas afastadas gesticulando como quem arrebate gado estremalhado.
    A Finura sentiu-se solta e cercada! E, é sabido que quando o sofrimento bate fundo, atira-se com a existência para longe em busca de alívio salvífico. Então insegura perorava: se ao menos estivesse ali o dileto guarda!? Descansaria na sua amizade e sensibilidade.
    Era um daqueles homens que parecia não ter idade; enterneciam-no um pequenino bicho que escondido espreitava ou, corria em aflição para se esconder; uma pequenina florzinha silvestre que era pecado cortar porque só ali embelezava o mundo todo;
    Quando macambuzio observava todas as minudências do mundo pintando com palavras vagarosas um quadro de esperança. Prostrava-se em longos silêncios enquanto assinalava e sorvia, em êxtase, todos os cheiros dos campos. Assim ficava desamparado no amparo dos seus pensamentos a contemplar, sem pressas, as árvores floridas o adejar das abelhas sobre as flores ou, um carreirinho de formigas laboriosas. Refletia profundamente sobre o inusitado da vida enquanto sentia e emanava um olhar humilde, puro e cândido. Navega, em si, um mundo interior dócil deslumbrado pela meditação que interrogava o que é imenso, eterno, belo e inefável.
    Por isso, nascia-lhe aquele encanto carinhoso de criança quando protege no côvado, das mãozitas postas, uma joaninha de cores vistosas que se quer livre. Assim como a criança ficava suspenso, intrigado, a esbugalhar os olhos e o seu ser de mistério, no pedacinho de vida que caminhava em cócegas na sua mão, agora aberta, com as duas antenas armadas para sentir o cheiro e o gosto, enquanto se ia encarrapitando pelo dedo mais espetado ao vento para da pontinha da falangeta, bem da pontinha, lançar o seu voejo gracioso de liberdade colorida a pedir a lengalenga: “joaninha voa, voa…”.
    Lengalenga que, como todas as crianças da aldeia felizes, sabia de fio a pavio, de tanto lhe ser recontada e recantada pela sua avó já velhinha de doçura que um dia, próximo da partida, o abraçou e lhe confiou um segredo que devia revelar: “Nunca te esqueças que há muita beleza no mundo para aqueles que sentem e sabem o onde e o quando destapar o olhar do coração”.
    Por fim acordava daquela existência interior e sentenciava: “são os animais e as plantas que nos ensinam a ser pessoas melhores!”

    Hesitante a finura deu duas passadas deslocou-se uma; ter mais patas não significa andar mais a cada passada.
    O Cabo já esboçava um sorriso mordaz e o guarda uma afoiteza impetuosa. Imaginavam-na, viam-na mesmo, a saltar pelo quinteiro dentro e a galgar escadas acima. Mas logo, num repente, ficou anichada, de rabo adoçado ao corpo, num atentismo extremo e medroso. Tinha visto a gata ensonada, enroscada, imóvel, indiferente ao mundo, na pontinha do beiral do telhado em pousio. Parecia medrar ao sol a bicha. Nem parecia a mesma criatura!
    Porém, ainda transportava boa memória da má recordação, ainda sentia as dores das arranhadelas arrebanhadas; golpes riscados na ponta do focinho e rasgões nas orelhas que ficaram retalhadas a sangrar:
    Uma bela tarde, pata ante pata, entrou e foi despreocupada sentar-se, num farrapito de sombra, junto ao monte de lenha inerte e dormente que acabava de secar, sem suspeitar o risco que corria pois, vinha por bem em casa de gente de bem. Mas, em menos de um ai, sentiu sobre o espinhaço um esgrimir de golpes de gata assanhada de unhas de fora que lhe riparam o focinho. Nem tempo teve para reagir, raspou-se atarantada e espavorida!
    Mais tarde quis saber o motivo de tal fereza e, à cautela, espreitou de longe. Mexericava no seu olhar inquiridor, a furar e a tentar acrobacias nos galhos, uma ninhada que a mãe gata em cuidados escondia. Percebeu a razão daquela bravura, estava parida e temia pelos filhotes. Ali, na casa da vizinha, jurou que nunca mais entraria! Só morta! Também sabia muito bem quem era o seu dono e onde era a sua casa, ao contrário do Cabo que supunha erradamente.
    -- Já para casa! Repetiam. Repetiam. Mas, “nem chus nem mus”!
    -- Vai ao dono! Continuavam. Sempre a apertar-lhe a escapatória.
    A finura da Magreza rastreava, coagida, brechas de distração. Mas nada! E nisto, do nada, veio a ajuda. No cimo das escaleiras de pedra a dona da casa proferiu:
    -- Se querem que ela vá para casa não a podem apertar os bichos, cercados não pensam!
    -- Logo que ela entre vamos atrás dela!
    -- E porque carga de água é que ela entraria! Exclamou a mulher, num tom corajoso, atirando palavras afiadas como setas da aljava.

    A Finura da Magreza sentiu parte da atenção do Cabo ocupada, mesmo assim percebeu que para fugir podia ter que escolher a dor. Fingiu que ia entrar e num repente, a querer voar, rodopiou. Zás! Saltou que nem uma flecha de arco estirado a não poder mais. Voou, adelgaçou-se, encolheu ainda mais o seu magro corpo e esquivou-se veloz, por entre a tesoura das pernas do Cabo que lhe fez um pontapé impiedoso, mas atabalhoado. Falhou de tanto querer!
    O bicho correu, correu até cansar. Já lá ia segura da sua liberdade. Parou de chofre, olhou para trás e fez mesmo ali: escorreram pingadas duas ou três pequenas gotas nervosas nas barbas dos olhos dos guardas que espreitavam em desalento. Sacudiu do corpo todo o medo e sumiu-se, pelo portelo das hortas, até se fazer um ponto minúsculo no além…

    O Cabo amargurado sentiu esquírola estentórea perfurar-lhe o orgulho e a vaidade. A sua cabeça, em braseiro, ficou inçada de dúvidas, chofraram surdas palavras, ressíbilaram frases curtas que, de tão impróprias, não foram lançadas ao julgamento público. De rosto laivado de rubor danou-se ao ver derruir assim o seu plano de levar o caçador furtivo ao calabouço!

    As pernas da mulher, dona da casa, desfaleceram, o corpo exausto deixou-se cair sobre o velho banco da varanda em desalinho. A gata que tudo viu, espreguiçou-se e usando o banzo, onde afiou as unhas, desceu do telhado, com a elegância que só as gatas possuem, e foi ronronar carinho fofo nas pernas e no avental. Roçou e ronronou até que a dona lhe poisou docemente a mão na cabeça, arrastando-a depois pelo lombo fora até ao rabo alçado. Com um olhar ensimesmado, a refazer-se do susto, juntou à carícia um desabafo: “não foras tu uma mãe extremosa, por Deus querer, e, ainda tínhamos a guarda esfuziada e vingativa portas a dentro”.

    O caçador furtivo, agora devoto, sem conhecer o desfecho, entrou na igreja de luz rarefeita onde as velas cintilavam santidade, fletiu levemente um joelho e fez o sinal da cruz.

    À distância de umas paredes meeiras também a Finura da Magreza, à cautela, entrava sem demora para a sua querença, pelo estreito buraco do gato, ora esgravatando e escorregando, ora espremendo-se e esticando-se, sobre o chão térreo, como uma enguia que se escapa.
    Sem palavras o Cabo empachoso afastou-se, do lugar, prometendo que o malandro não perderia pela demora e jurou perante o símbolo, dos botões cromados da farda, que um dia a raposa matreira, cairia no seu laço e ficaria a saber como eram pesadas as grilhetas da lei. Os guardas em silêncio colocaram as armas à bandoleira, arregimentaram-se imbuídos de acatamento e humildade, seguiam o Cabo que caminhava, de pistola no coldre, agastado por ter perdido a contenda e ver assim os seus intentos esgarçados,
    Desceram no fundo do povo pelo Alvaredo apanharam a estrada rompida, no sentido das poucas águas que corriam na ribeira, sempre num mutismo extremo. Porém, no dealbar da alvura das guardas graníticas da ponte, que vieram de longe, o bondoso e astuto guarda, que pensava sempre o amanhã por saber que o mundo sempre continuará, soltou levemente os pulmões, enquanto respirava, e, do silêncio lançou duas palavras, sorrateiras e moles, para fazer esquecer o revés e, entreter conversa distraída.
    Opinou qualquer coisa sobre o tempo e os renovos dos campos circundantes. Assim salvou a patrulha do carrego de frustração que o insucesso sempre engendra.
    Continuaram, mas agora já outros, a calcorrear os caminhos e os atalhos que os levassem à Vila, ao seu Posto.
    Abandonaram o termo, volveu a paz àquele mundo onde a marcha do tempo seguia os ritmos do ciclo anual da natureza aclarados pelas lavras das decruas, pelas sementeiras e seus cuidados, pela floração colorida dos campos e pelo despontar dos rebentos verdejantes e, por fim, pelas colheitas que sempre guardavam sementes, --ouro--, que irão renascer.
    Ps.: tinha decorrido um ano de colheitas ou mais, até que um dia, numa ronda, o Cabo viu com surpresa do largo da Freiria, em cima da parede de um pátio fronteiro a Finura da Magreza refastelada, na segurança do lar a dormitar. Só aí entendeu o fradaço e compreendeu o engano tido!
    (mo. fim)
    DSLC
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