• Nós por Cá

    quinta-feira, 3 de abril de 2014

    A caçada


    Não era dia de fazer, já clareava e a cadelinha pequena e zelosa chegou, de olhos brilhantes, para ver se era dia?
    Anunciou-se rapando na larga porta de madeira tosca. Chamava o companheiro. Queria saber? Farejou-lhe os movimentos e o cheiro a pólvora esperou impaciente de orelhas a pino olhando pelas frinchas que o tempo arreganhou.
    Cumprimentaram-se: ele com o olhar e ela com a cauda de olhos alegres. Agachou-se e cara à cara, olhos nos olhos, acarinhou-lhe a cabeça e as orelhas com ternura falando por ele e por ela: -- «Bom dia fina coelheira».
    Ao pressentir a espingarda embrulhada no velho casaco de herança, ficou radiante roçava-se-lhe aveludada nas pernas por cima das calças em cumprimentos.
    - «És mais esperta que um cristão! Vamos antes que seja dia que ainda os caçamos no mata-bicho, descontraídos naquele sossego».
    Rasparam-se em silêncio rua acima ele a encolher a tosse,-- que também se queria espreguiçar--, das orelhas dos vizinhos, enquanto pensava na inteligência do bicho e nos mistérios do mundo. O bicho, quase cristão, na esperteza, seguia a seu lado sem sair do caminho a querer dizer qualquer coisa, que pressentira, mas nem pensava direito era viciada no rasto dos coelhos.
    Por cautelas tinham que ir para longe do povoado, subiram à portela desceram à felgueira, contornaram o alto de chã Dias, passaram o vale de gateira e chegaram aos lameiros de vale de estrumeiro onde as ninhadas tinham sido observadas, pelo ano fora, na sua inocência e graciosidade.
    Sabia-lhe a morada, arranjou lugar que lhe pareceu apropriado na borda do monte, disfarçado junto a uma carrasqueira, à espera que a finória os botasse fora. Rabiava – porque os coelhos sabidos cruzavam os rastos para lhe dificultar o trabalho de perseguição -- como furão no baixo e ralo silvado, ficava como um pinto de banho dado nas gotas do orvalho. Perdeu-lhe o lombo e a ponta das orelhas por momentos. Mas, nisto, ouviu-a soltar um latido, como um silvo, agudíssimo para amedrontar os láparos e dar o alerta e, saiu-lhe logo ali, de rompante, um coelho felpudo a mostrar o branco do rabo a faiscar a cada salto ziz-zag. Atrapalhou-se. Ficou atarantado. -- «Saiu-me debaixo dos pés»! Carregou-a de novo.
    - «Foi-se um tiro e um cartucho»! A cadelinha vinha no encalço, a morder-lhe o cheiro, para fazer o serviço de busca. Olhou de focinho no ar, --olharam-se rápido--, ele estava melindrado, ela fez que não viu e voltou para o seu farejar profissional com um leve sorriso trocista de reprovação: -- «Viste-lo pelo rabo…».
    O tiro varreu aquelas encostas onde estavam ouvidos à escuta, de corpos em espera. Eram caçadores de caçadores do defeso que tinham recebido incumbência do “maioral”,-- que tinha recebido denuncia de um reles informador que eram e são sempre os piores. O maioral não parava de picar, no dizer do Cabo Costa, que sendo o terror dos terrores, nas redondezas, vivia atemorizado por tal poder e desabafava de forma quase codificada:-- «Não para de picar e tem uma agulha muito comprida».
    - «Só queria dar um tiro e ter carne para o almoço da ninhada, parece que hoje estou com azar». Redobrou a guarda e ficou-se naquele pensar…
    Eram três instruídos, até por gestos de envolvimento, abriram linhas e foram-se acercando, de seguida, da fonte do estampilho usando sombras e barreiras. Um deles foi visto, pelo instinto vigilante, e se era um, eram pelo menos dois, estava à distância de pouco mais de um tiro quando os primeiros raios de sol denunciaram a sua posição nos poucos cromados do uniforme.
    Sem saber se já tinha sido visto fingiu-se no maior dos à-vontades baixou-se e desapareceu mato dentro, primeiro monte acima com estratégia treinada, já tinha fugido dos carabineiros e guardas na raia, com molhos de alpercatas e mitras no lombo. Por isso, sabia-lhes as manhas:
    – «Estão-me a apertar, tenho que ser rápido antes que me cerquem». Nem teve tempo para pensar, correu, mostrou-se em cima, fingiu subir mais, mudou bruscamente de direção botou-se ao silvado como um reco bravo em desespero a fugir de zagalote, sem sentir as arranhadelas. Esgueirou-se por entre os tojos e silvas convencido que o guarda que ele ia guardando, com o olhar à distância, não o faria.
    E, assim foi.
    Os guardas naqueles tempos caminhavam muito, quando novos, “eram como cavalos” para os fintar tinha que se ser galgo e raposa. Fecharam o triângulo em linha de vista e não tinham, o salafrário --no dizer do cabo
    - na rede lançada e recolhida. Olharam-se. Olharam em redor perscrutando e nisto, viram-no além pelas costas de relance, tinha-se-lhes escapado por entre os dedos o malandro.
    O Cabo sentiu-se derrotado e frustrado, botava labaredas incriminatórias pelos olhos,-- como a porta de um forno quando tem lenha a mais--, na direção do guarda, da banda por onde ele tinha escapado.
    O guarda, já um pouco balofo, encolhia-se dizendo eu não o vi, se calhar não fugiu pelo meu lado acrescentava com palavras caladas, tímidas, hesitantes e respeitosas. O cabo ia para resmungar autoridade “por aquelas bentas fora” mas nem teve tempo, era perigoso. Tinha tanto de carrasco como de astuto. Teve uma ideia. Ouviu a cadelinha ainda na sua azáfama, viu mexer a ponta das ervas altas, pegou na espingarda de um e deu-lhe a pistola, ficou em camisa e mandou retirar a parelha. Aproximou-se da laboriosa -- que nem se tinha apercebido que o seu velho amigo se tinha ido embora, tal foi a pressa que nem a chamou o ingrato.
    Quando ela veio à borda do mato, --para referenciar melhor a posição do caçador para lhe por os coelhos a jeito na ponta das espingarda--, meia tonta depois de tanto riscar naqueles rabiscos de criança de voltas e mais voltas a fazer novelo. Estava ali de pé a querer ser astuto. Viu-a vir. Apareceu-lhe matreiro agachado com doçuras, até na voz falou-lhe em linguagem de canídeo e estendeu-lhe a mão com apresigo cheiroso da merenda. Mas ela não ia comer da mão de qualquer um e ficou-se naquele balançar de avanços e recuas num hesitar indeciso. Mas a magreza da cadelinha, pequena e fina quase como um cristão, não resistiu ao apetite. Queria continuar a caçada até abocanhar uma preza. Viu-o, ali, com uma arma e pensou, ou quis pensar, que devia ser caçador. Receosa e tímida aproximou-se insegura, hesitou várias vezes sempre a querer fugir. Decidiu-se, apanhou rápido o cibo com a ponta da língua, de pescoço esticado, de cima de uma lajezinha limpa. Mas não fugiu a tempo, o braço era comprido e caçou-a de mão lampeira pela tira coleira. Amarrou-a logo com o fiador da pistola.
    Sentiu-se presa e traída, mas a mão que a puxava era forte e autoritária.
    - «Aproximem-se! Chamou. -- «Olhem o que eu cacei!». Disse rindo vaidosamente empertigado pelo convencimento de quem tinha um plano, e acrescentou:-- «Desta vez não me escapa esse tal Digo sabido que me faz andar a patrulhar montes em dia Santo».
    - «Pega lá nela já que o deixas-te fugir a ele seu incompetente! Se lhe desses um tiro não se perdia nada porque ele estava armado e isso depois resolvia-se…»
    (mo. cont.)

    Dinis Costa
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