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    segunda-feira, 12 de maio de 2014

    A caçada II


    "… a olhar para todos os lados, passou-se para o lado da fraga da loba. » (abril 2014) «Ah mas havia a cadelinha! Quando der pela minha falta procura-me». Pensou e continuou a matutar conjeturas. «Tenho que ter cuidado que aquele diabo é matreiro, sabe muito, é só ruindade. Aquele danado é bem capaz de a seguir para ver se me apanha. Não me posso distrair, tenho que lhes guardar as andanças» ….
    Aquietou-se, por momentos, na ponta da pequena ribeira do Vale de Ladrões, que nascia no rego da lavra que encaminhava as águas quando muitas, cônscio do perigo que correu. «Podia ter levado um tiro» diria mais tarde com destemor sentado num banco de pedra, num recanto soalheiro, com vistas que retalhavam a rua à sua frente, onde repousava a calma de suas pressas.
    Descontraiu, inquieto, um sopro de tempo, respirou cautelas e foi indo, avançando como quem ceifa, a adoçar-se à parede. Esta, eram mais pedras amontoadas, alinhadas, a conduzir o caminho para o seu destino e a guardar, dos rapazes, as uvas pintas no seu tempo.
    Pedras às cavalitas aconchegadas pelo musgo que abrigavam, do vento norte tardio, os pampos ainda tenros das velhas cepas, plantadas por saberes da experiência em “lugar que não escaldava”.
    Foi-se chegando em passadas cautelosas como quem tinha amor proibido ou ainda de quem queria sussurrar segredo. Encolheu-se curvado. Aninhou-se, como coelho em cama que até as orelhas corta, em frente de uma fresta, ameia ou seteira, a observar cauteloso e atento o cruzamento de caminhos, lá longe, que eram ponto de passagem até de lobisomens, que nunca ninguém os viu mas afiançavam que existiam em noites de lua cheia.
    - «Se os malvados viessem para os lados de cá tinham que bater ali. Eles ainda não podiam ter passado» cogitavam seus pensamentos. Sem os ver no giro não podia pesar a segurança e pôr-se a caminho no seu rasto, sempre a temer que se voltassem no sentido, sempre à distância, num pára se eles parassem e num anda se eles andassem…
    Ficou-se paciente, como quem caçava, à espera, guardava a guarda de longe, tão longe quanto possível e tão perto quanto necessário. Agora já se sentia capaz de mexer num agregado de pensamentos que lhe afloravam:
    - «Era o que faltava deixar-me apanhar para ser levado para a aldeia escoltado! Se calhar, até algemas me mandava pôr, aquele biltre, como se eu fosse o maior quadrilheiro das serranias. Ainda me fazia passar pelo largo da Freiria onde é vertida pela manhã a aldeia toda, em dias de missa, a caminho do posto da vila. Arrastavam-me como um cristo, tudo para servir de exemplo e saciar a sua vaidade e altivez de comandante do posto. Isto se não fosse dar conta ao maioral, da caçada, como prova de obediência e para comprovar que o serviço tinha sido bem feito, na esperança de obter elogiosa referência à hierarquia. Porque o maioral *era omnisciente, ouvia e via tudo nas redondezas pois tinha muitos ouvidos e olhos ao seu serviço, como tinha todo o poder e ainda tinha uns binóculos para juntar o que estava espalhado à sua volta na ponta do seu nariz, que se metia em tudo».

    Num remexer de memórias contagiante: muitos sofreram no corpo e no espírito aquela omnipresença cerceadora, mas o tempo anestesiou a dor --que a memória não esqueceu--, para que se possa viver. A ignorância, ingénua e até feliz, era colaborante no domínio, estava prisioneira em preconceitos, em usos e costumes, superstições e tradições ancestrais, que alimentavam, aquelas cabeças e contribuíam para o controlo social, uma forma de perpetuar a estagnação e o domínio hierárquico. Deixavam-se conduzir por remoques que aturdiam as suas cabeças e por sermões que estremeciam nos seus corações puros.
    O poder sabido e com escola, mais os que viviam debaixo da sua sombra e obediência, bem instruídos, sempre que necessário, usavam insinuações infames, manipulando as fraquezas humanas: ódios, ciúmes, rivalidades, pequenos conflitos locais, amores e desamores, tudo servia para destabilizar as relações, fragilizando os laços de solidariedade e assim dividir e arregimentar acólitos.
    Aqueles que não mostrassem obediência,-- submissos que nem cordeiro que ia para o sacrifício--, havia que os dobrar, primeiro com subtilezas e cumplicidades fazendo uso de todo o seu prestígio social e político. Mas se fossem de convicções fortes e não se deixassem cair nas esparrelas, faziam-se circular insinuações torpes, traiçoeiras e abjetas para lhes roubar a dignidade, a consideração e o respeito da comunidade. Por último, se resistissem aqueles meios com integridade de carácter, com um pretexto qualquer mandavam-se para o posto, onde eram apertados e afagados.
    Doridos e magoados na dignidade, voltavam ao seu torrão, às suas vidas às suas casas. Agigantava-se no seu pensamento, na sua alma uma revolta incontida e desassossegada pois sabiam-se condenados ao ostracismo e à perseguição do poder turrão. Mas suportavam porque havia sempre alguém que ganhava consciência e resistia às injustiças, de qualquer poder, para salvar a humanidade dos seus desregramentos. Alguém com nobreza caracter que sentia que valia mais «morrer livre em consciência do que viver em paz sujeito».
    A teia dos informadores ambiciosos e malévolos, estrategicamente plantados e instruídos era um perigo. Sempre no seu posto, a querer mostrar serviço, só tinham olhos e orelhas maiores que lençóis. A paredes meias, a fazer-se amigo, vivia o traste rixoso que o denunciou, «essa reles criatura menos que uma asquerosa lagarta peluda, iria ficar a rir-se, na minha cara, a vida toda! E as bocas do povo, que tinham boa memória e nunca se calavam, iriam contar a história para todo o sempre. Era uma desonra, se fosse caçado».
    Num rebate arrependeu-se dos insultos ditos e pensados: «a perseguição podia não ter acabado e a bazófia também é pecado». Não se podia esquecer que recorreu à divindade para que lhe desse uma mão no aperto. Teve temor, mas logo compreendeu que Deus, que conhece os homens e lhes fala de dentro da sua cabeça no coração não o ia abandonar. Porque sabia que tudo o que ele pensou era a mais pura das verdades e Deus, na sua justiça complacente, não castiga quem pensa as verdades mas quem pensa e sabe as verdades e fala as mentiras com palavras dissimuladas e ditas de mansinho melado.
    «Não me pilharam! Quem havia de dizer que a estas horas, num dia destes, já estava aqui o braço armado de quem manda!» Olhou-se, em segurança, na certeza de que eles agora já não lhe botavam a mão. Num tatear arrastado ateou-se em palmadas, quase virou os bolsos à procura da navalha, «que era o que se perdia mais fácil». Tinha tudo, não deixou para trás prova.
    Pareceu-lhe e viu o que queria ver: «Olha botaram-se ao caminho. Está visto, não pretendem dar-me caça. Fazem bem! Nos meus montes --que são cores, odores e me falam ao coração em nome dos meus mortos--também não me pegavam. Tinha que ser um regimento. Só morto!»
    Com os olhos na patrulha, em formação, pensou que já podia ir esconder a espingarda e continuou a pensar na cadelinha que tinha ficado a maticar e a furar! (mo cont.)

    Dinis Costa

    * Décadas mais tarde disseram-me: «morreu do 25 de Abril». Queriam dizer que já tinha idade mas que tinha alergia à liberdade e «aquilo ainda o levou mais depressa, estar habituado a ser senhor e mandador», a esmagar tudo e todos pela sua prepotência, «… e depois ver-se sem poder… não ser temido era, sei lá…». Acrescentaram.
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