• Nós por Cá

    domingo, 21 de setembro de 2014

    A caçada e a fonte do bairro Novinho

    Fugiu-lhe a estrema por debaixo dos pés e, num instante apressado, fez-se dia sem sol. Um pé-de-vento leve, como fanfarra que anuncia, veio e agitou as vergônteas que se davam em gemidos e choros. Por cima de tudo impôs-se uma sombra estendida e bufada, muito negra, que corria pelo termo a fazer a terra escura.
    Seguiu-se uma brisa fresca e húmida que veio afagar-lhe o corpo onde a roupa faltava, metendo-se até com as frestas de nudez no intervalo dos botões. Espreitou submisso as alturas e sentenciou um rogo perseverante; com o milenar saber de gente iletrada mas que lia no livro da natureza com máxima ciência:
    "Se viesse apagava todo o encalço!... Traz água em barda! Vem carregadinha. Se ela caísse de mansinho sem levantar vento forte que partiria as gumelantas tenras é que era!... Um mimo para tudo,... Uma molha bem apanhada! O sequeiro está a estalar com sede umas pingas agora vinham empertigar a gradura toda! e, umas pingas com calor até faziam saltar a erva!”
    Aquela sombra enfunada a criar formas disformes impunha-se gorda como um sapo ondulante empertigado, tudo ensombrava. Apaga o sol das leiras cortadas em tiras do fundo ao cimo: para terem olga, seara e monte; ponteadas por marcos de pedra compridos, enterrados a pino com guardas para proteger da relha e mostrar que era obra humana, marcavam a posse onde as aves, por vezes, vinham espenujar-se. Campos retalhados pela herança e talhados ao través pelo rego da água que mitigava a secura e benzia o zelo e os cuidados de mãos calosas, com dedos gretados e unhas de trabalho.
    Um volume, maior que tudo, que se transfigurava e eternizava nas pequenas cabeças onde se projetavam imagens que se gravavam na alma como grãos de sagrado num entendimento ainda tenro, a exercitar a imaginação em busca de nóumeno.
    Ondeava suspenso em andanças aquele fumo de lenha bem verdonga,-- a enganar o relógio das galinhas a querer poleiro--, envolvido por um aro raiado de cabeça de imagem santificada espectral. Um dourado solar que se contemplava com um olhar de subtelha na aba da grande sombra cheia de vida, de mar que vinha de longe regar aquele mar de terra que era a vida de todos.
    Foi ouvida a sua prece, afastou contente o braço em aspas, asa do corpo, e desprendeu-se da mancheia das ervas que se prostraram num montículo verde no castanho da terra lavrada. Recebeu gotas e depois os respingos com agrado até lhe estendeu as mãos abertas em agradecimento. Ripou um pedacinho do caule rijo de uma ervinha que colocou ao canto da boca para enganar o corpo e deixar a mente livre.
    Foi-se encostando ao madeiro de um velho castanheiro esquelético e tenaz de alma carcomida que observava e escutava, desde sempre, as conversa das mulheres e o murmurar dos namorados que segredavam baixinho numa voz ternurenta e rouca seu amor: Não se pode dizer o que é o amor por ele não caber em palavras, mas ele corre, corre e é sabido que o maior de todos é o impossível. Quando os apaixonados não se podem ver, falar e tocar, por impedimento maior que a energia da transgressão, ficam a ferver por dentro momentos, dias, meses, anos, ou até vidas, digladiando-se e digladiam-se a entre a tortura e esperança. Quando a esperança fraquejava e a tortura se impunha ouviam-se lágrimas no coração enquanto ele fraquejava num desfalecer e ia morrendo...morrendo para aquilo que seria a sua cura... ontem tal como hoje...

    O crivo da chuva despenhava-se riscando o ar com as pingas gradas fumegantes na terra nua e no pó dos caminhos. Pareciam possuídas por um contentamento ao encontrarem a pelicula espelhada da água da mina e da poça onde faziam num agradável tagarelar uterino arcos redondinhos em boca de peixe, que beija a superfície em busca de migalhinha lançada por mão de criança de sorriso curioso.
    Sentiu aquele esboroar agradável a cair do céu e por momentos o coração deixou de bater de preocupação e a cabeça suspendeu aquele cuidado e, extasiado entregou todos os seus sentidos à natureza de que era feito. A chuva fora aguaceiro primaveril e já queria correr nas relheiras dos carros do caminho empinado que vinham carrear dornas de água quando a precisavam em abundancia desmedida. As plantas, num hino de agradecimento, já apresentavam o seu verde viçoso e, por isso, renasciam e vagueavam cheiros de plantas e flores odorantes
    Os raios solares candentes já queriam vazar em clareiras de luz, aquela cisterna voadora de água livre, eram aguarelas de sombras e luz que se pintavam e repintava de onde em onde. E, continuou naquele encanto, o homem que é povo, a entrançar-se e a desentrançar-se nos pensamentos e todo o seu ser renasceu ali em memórias de momentos ingénuos de criança, que agora são sombras nostálgicas que ali retornam,... ressaibos. Ressuscitou, a metodizar os pensamentos, aquele naco de lugar que não foi soterrado na memoria cheio de gente, num bruaá estrépito, todo cerzido de sentimentos. Foi rememorando, com um brilho nostálgico nos olhos parados na paisagem indefinida, prostrando-se num silencio impassível, a medir em isócronas a incomensurável profundidade daquele passado: era boca de mina comprida e escura lá no fundo. Um rasgo escavado e esguio com água sempre a nascer e a verter. Como as coisas são?
    Lembrava-se, agora, de como parecia enorme à sua pequenez!
    “O buraco da mina estaba coberta com uma laige grande. A água era muita e as mulheres segurabam-se com uma mão na laige do tilhado e com a outra mergulhabam o caneco. Depois punham-no a escorrer em cima da laige, de baixo, antes de o por na cabeça. Como a água estaba sempre a correr barria os ciscos da tona da água p’ra fora.
    As sobras corriam para uma poça de rega que ficaba ali a binte metros. Quer dezer eram duas uma era de labar e a outra era de rega e dali é que nascia um rego na direção do pobo a regar as hortas e milhos. Regabam tudo. Era uma regalia do catano! Ajudaba a gérar tudo, nada ficaba eibado. Mas para proteger a fonte das águas do campo ainda tinha umas laiges altas a pino a amparar o ribeiro e a tira-lo de lá. Porque a mina era mesmo no meio do regato. Habia lá salamagantas tão grandes. Carbalho que linda nascente lá habia! … Que comeriam aqueles bichos?”...

    A que não tinha sido levada em cântaros vertia-se para uma poça larga de água limpinha sempre a correr, onde as mulheres de joelhos sobre um farrapo velho e grosso, torcido em rodilha, a fazer de genuflexório, tagarelavam lavando. Nasciam conversas que brotavam, como a água da nascente, a fazer correr a vida do povoado de boca em boca, com ouvidos à escuta, enquanto elas lavavam roupas dos crescidos e trapos dos pequenos, num espreguiça de gata e molha, num esfrega e torce, num esfrega de novo a fazer rabos em balanço sem saracoteamentos sensuais notados….

    (mo. continua)

    DSLC (setembro 2014)
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