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    quarta-feira, 8 de outubro de 2014

    A caçada o som do lugar e a maternidade

    Desviou o olhar das silhuetas recortadas na memória, que o corpo agora adulto maduro e vigoroso lhe queria conduzir à sensualidade e voltou à inocência de criança onde as mulheres que o rodeavam só eram mães, quase divinas, e irmãs, o mesmo sangue.
    Sempre a escorregar para a preocupação vacilou e perorou: "teria a patrulha procurado encosto na zerbada?" Queria querer, porque isso lhe abonaria tempo...lembrou-se da sua amiga que tinha uma astúcia de bicho e um entendimento de cristão… enquanto ia pensando que os outros seres "por i" foram postos no mundo para nos dar a possibilidade de sermos humanos; até uma plantinha criança era amparada até se suster na sua fragilidade....
    E, assim se sentiu, de novo, embalado e suspenso pelo gotejar da memória, no torpor da existência, onde a infância sempre se apronta meditativa e curiosa. Aquele espaço foi masculino no rasgar da rocha em busca da água que corria nas entranhas da serra do Banho até encontrar a frincha, por baixo dos seixos da portela, onde ressumada na invernia e uma fenteira de tufos esparsos em linha que a bebiam em verdura pelo ano fora. Os homens interpretavam os sinais e diziam: aqui passa uma veia forte. Persistiram na procura com picareta, pá, ferro e esforço esgravataram fundo e foram-lhe abrindo o caminho, tirando-lhe a terra dos olhos, até a ver borbulhar a fazer um fio cristalino, depois uma telha de caleiro rasa e por fim um bom rego. Brotou ali com ajuda, naquela pobreza de solo, uma exaltação da Natureza.
    Agora, jorra longe, é prisioneira de um tubo que a encaminha nas trevas e de uma torneira carcereira que a liberta em golfadas, sem sabor, sob uma pressão ruidosa. Protesta largando um sibilo que lhe roubou aquele cantar dolente e melódico que noutros tempos se ouvia, de noite num silêncio acolhedor. Uma sonoridade que entrava pelos ouvidos e vinha acariciar quem a sentia.
    Tudo foi soterrado e os sons que soavam dissiparam-se, escaparam-se para sempre os sons de tudo e os sons são o que envolve e reflete o que está, são a sua presença sem forma. Temos pinturas, temos daguerreótipos mas não temos o som! Queremos os sons do passado que também nos fizeram, mas só vamos acedendo aos do presente que se escapam. Ter o som de um lugar é aceder ao espaço total tal como ele era, com tudo lá dentro. Aquela infinidade de sons, resgatados pela memória, borbulhavam na sua cabeça que contemplava as recordações e sentia que tudo é efémero.
    O lugar era e refazia-se a cada dia feminino pelos cântaros e a momentos masculinos pelas dornas e pipas. A poça de lavar, que tinha que estar sempre cheia, era só delas. A masculinidade não lavava, a rega por norma era das calças, só era das saias se a navalha de barba já não tivesse cara escanhoar, ou melhor, se já a tivessem levado ao passamento.
    Por mais ínfima que fosse a lembrança ou o indício tudo estava impregnado de feminino. As vozes maternas e as dos seus frutos misturavam-se com o marulhar da água e compunham o garrular sonoro que tudo envolvia e em tudo se metia: para o som, as pessoas não estão vestidas nem as coisas estão cerradas....
    As mulheres que já se tinham feito mães pela dor do parto, tinham uma posição dominante pelo estatuto de classe e pela experiência. Por isso, tinham preferência na escolha da pedra e se as houvesse desavindas acomodavam-se nos extremos e todo aquele lume de alegria deixava de crepitar e adormecia tenso. O costume mandava que escolhessem dias distintos porque mostrar a roupa era revelar também o que se era, o que se tinha e isso requeria alguma intimidade. Quem lavava ao lado só podia ser como da família.
    As rapariguinhas trigueiras, ornadas de uma beleza natural, com os seios a arfar a cada suspiro profundo, viviam cheias de sonhos, queriam ser escolhidas e escolher os seus pares: preferencialmente que fossem de boas famílias e tivesse que "rilhar" no dizer das casamenteiras
    As mocinhas, em metamorfose protuberante plena de tonicidade, com muita ingenuidade e ainda pouco pudor que pensava e ainda organizava o desejo e a malícia, cresciam a ver e a tentar fazer.
    Os pequeninos, que não tinham com quem ficar, também iam. Os de leite nanavam, no intervalo do peito, embrulhados em refolhudos trapos dentro de uma giga berço com um pano de linho branquinho a fazer de umbela. Quando a maternidade ainda fresta falava mais fundo, quer dizer mais alto, interrompiam o que faziam e, espreitavam-nos delicadamente, abrindo docemente os olhos e, ficavam-se enternecidas em silêncio, a fazer carinhas de mimo ao soninho delicado. Contemplavam e guardavam juntinho ao coração aquela imagem para todo o sempre. Adorado aquele tesouro, voltavam ao lavadouro com uma pontinha de vaidade merecida, pois a maternidade era e é a sua maior obra.
    Quando se reflete com alguma profundidade, numa busca obsessiva de um sentido definitivo, somos obrigados a concluir que a única coisa que se deixa no mundo é a descendência enquanto esta não deixar de o ser nós seremos nela.
    A maternidade será sempre um mistério: muitos anos depois ouvi dizer a uma mãe consternada que gostaria de ter tido uma maternidade plena, pois tinha tido os seus filhos de cesariana e sentia uma certa incompletude maternal.
    Fiquei em silêncio a medir a profundidade do nobre desejo. Só pode ser tudo para os seus filhos uma mãe assim. É uma bem-aventurança. O que é verdadeiramente importante está escondido dos olhos.
    As menininhas ainda sem mãos de proveito lavavam com todo o esmero espevitado um trapinho numa laginha posta no rego, ao rés da água, por suas mães;
    Os meninos ainda sem pernas e tento para proveito faziam-se agricultores logo ali, garatujando um cantinho de terra mole ,-- arredados do perigo, de uma escorregadela irrequieta--, com um guiço arado, feito de uma gancha, num parla pie, com o seu mundo, a comer palavras em construção, iam dando ordens à valente junta: "ao dego...bida cá bida... se boui te refofo!. Se vou adi..!".
    Quando se afastavam um bocadinho do olhar, o coração de suas mães estremecia, e eles ouvindo acudiam ao chamamento localizador como brasas sempre vivas.
    "--Cá qui!"
    As palavrinhas adocicadas saíam coxeando engraçadinhas a amolecer corações. Vinham logo, logo, correndo descalcitos, dando estalinhos com a planta dos pés na terra dura e lisa daquele recreio de largueza. Traziam as candeias acesas para alumiar a carreirinha e vinham encostar-se de passagem com miminho de leveza e graça às pernas de suas mães a fazer pregueado nas saias. Esta apagavam-lhas de mão molhada e ágil enquanto lhes doavam afagos num abracinho curvado.
    As que já tinham corpo, braços e mãos de trabalho empenhavam-nos na lava da surrapa enodoada pois a vergonha de uma família, que não andasse limpa e arrumadinha, era cobrada inteirinha na cara da lavadeira matriarca que governava a casa ou nas suas filhas já mulheres. Por isso, desunhavam-se todas, todas não!-- As Donas não lavavam tinham criadas melhor, até tinham tanque próprio porque as roupas não se podiam juntar é que dando-se perdiam o estatuto, --
    Desunhavam-se umas com mais outras com menos mestria, porque os costumes demolhavam também toda a vida social local. Umas para manter o prestígio e outras a querer impressionar os moços; na boca de suas mães que as observavam e depois lhes lembrariam:
    "-- Olha que aquela rapariga é prendada e desembaraçada!"
    A elas iam-lhe dizendo: "-- Minha filha uma boa dona de casa até se conhece pela maneira como dependura a roupa" -- alertavam-nas, enquanto as educavam pelo exemplo e as aconchegavam em conselhos.

    (mo.continua)
    DSLC
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