• Nós por Cá

    domingo, 9 de novembro de 2014

    A caçada e as agulhas da vida, novembro (2014)

    A prosa encharcava, ressumava, soprada a cada esforço, rodopiava nas cabeças e assim ia correndo despreocupada a grazina de lavadouro para lavadouro.
    Os movimentos adornados de intenção e ritmo, surdos p´ra conversa que o pensamento guiava, emparelhavam com a respiração de corpos requebrados, plenos de ligeireza, flexibilidade e beleza. Repetiam-se em gestos. Mergulhavam e molhavam primeiro cada peça que se debatia levantando a tesura a querer escapar-se para não se deixar ataganhar.
    O ar cercado protestava, tentava ruflar e digladiava-se para fugir ao afogamento. Faltava-lhe ar!
    Resignado aquele pano grosseiro talhado em calças e corpo, deixava-se domar por mãos, sofridas, sábias e dóceis que semeavam carinhos com poucas palavras. Numa brincadeira, p´ra pequenos verem, vestia a água e ficava enfunado a fazer espantalho intumescente. Escafandro sem cabeça, que amedrontava e intrigava os inocentes que ficavam amarrados de olhos arregalados de susto e admiração.
    Mas, os conselhos continuavam derramados em palavras e num aprender de ver fazer. Se havia coisa que não podia ir para a poça de lavar, escondida no meio da roupa suja, de maneira nenhuma, eram as agulhas porque se elas fossem a lavadeira podia não vir, ou melhor, vir em dilaceração.
    As mulheres sempre sabiam, pelo perigo que podia representar aquela delgadeza de haste de aço, onde moravam as agulhas da casa que tinham sempre contadas. As agulhas representavam o perigo da grandeza da pequenez que se escondia aos sentidos. Todos sabiam, os que ainda não sabiam aprendiam depressa, que elas entravam até ao tutano se encurraladas sem escapatória picavam sem avisar fundo na carne ou, pior ainda, iam até ao osso na magreza de corpo héctico.
    Porra! Agulha do carvalho! Filha da...Gritava a dor que se encolhia . Então lá estavam elas cuidadosamente arrumadas, onde sempre deveriam estar, espetadas de cabeça, que entrava e saía, deixando o rabo no ar de linha metida pra fazer rasto num pano dobradinho a fazer grossura ou em bochecha de almofadinha , dentro do açafate, que o cigano tinha feito e a cigana apregoara em ladainha lamuriosa. Toda a casa tinha uma, igualmente guardada, de ponta farrusca e destemperada de tantas vezes ir ao lume para a desinfetar do cocho, antes de escarafunchar à procura de espinho que se tinha cravado fundo, ponto negro debaixo da pele, fora do alcance de unhas rijas e pretas como tenazes ou de mordedura de dentes em pescoceira, num fixar, morder e cuspir.
    Quem as usava logo as guardava porque agulha sumida era uma preocupação acrescida. Quando não era conhecido o paradeiro de uma agulha a dona da casa dava o alerta:
    -Falta aqui uma agulha!
    Logo todos os corpos se sentiam picados e seguiam atrás dos olhos, monóculo, no seu encalço, porque todos as temiam.
    As mães temiam-nas nas mãos dos seus meninos que as podiam engolir e eram um perigo, nas brincadeira, para os seus olhitos. O lavrador temia que os animais as engolissem embrulhadas no pasto. Porque os bois até os panos comiam! Com agulha sem paradeiro certo, as lavadeiras com cautelas passavam a roupa pelas mãos, tateando numa busca metódica peça a peça, antes de a molhar.
    Tudo porque desde o inicio dos tempos se ouvia dizer que outros tinham dito e dizia-se que se uma agulha se partisse, na esfrega, e entrasse numa mão eram horas curtas até chegar ao coração mesmo de corpo quietinho e braço dependurado com garrote, feito do atilho do avental, a embaraçar o braço e a embargar o caminho de retorno ao venoso.
    Diziam que era o fim! Um suspiro de uma lágrima só! Um cristão embarcava como um passarinho...
    Há outras agulhas. Ah se há!
    As agulhas que se espetavam e espetam no coração, que não se vêm mas que se sentem, foram, são e serão sempre umas das principais agruras da existência, muitos suspiros felizes e doridos, muitas lágrimas silenciosas brotam a sufocar.
    Dizer que tudo começava e ainda começa, por vezes, num olhar que picou sem dar explicação! Seria o acaso ou o livre-arbítrio que comandava o que picava e o que nem se nota que passa? Como brincava e brinca connosco a Natureza de que somos feitos! A picadela recebida de um olhar inço, de um gesto contido, de um meneio tímido e natural, de um silêncio melancólico e amoroso, tudo se sente ainda na maior pergunta diacrónica sem resposta: se fosse, como teria sido!? Assoma vezes sem conta como marca do passado que não cicatrizou disfarça como irrelembravel, para que a vida corra, mas não deixa de nos fazer padecer em lembranças.
    E, é assim a vida onde sempre se vai sentindo uma ou outra picadela a moer... a moer... na dúvida.. no impossível!
    Mas para estas agulhas, que se espetavam e espetam, até de bem longe, quando menos se esperava, não havia, não há e não haverá garrote capaz nem forma de as extirpar porque se sentem em toda a existência, sem se saber bem onde.
    O único garrote capaz seria o do pescoço mas esse é imperativo que nunca exista! Vá de retro!......
    As peças que de inicio se debatiam depois de bem encharcadas ficavam quietas maleáveis, davam-se ao ensaboar da mão mais lesta que parecia distraída mas fazia e sabia o que fazia. A lavadeira mantinha o sabão bem preso na mão, porque este era fugidio e mergulhava, em menos de um instante, para se ir esconder todo no lodo num pestanejar.
    Ao balançar enérgico dos corpos respondiam as faces: se o pano tinha um lavar leve o rosto descontraía e a conversa passeava-se. Mas se ele fosse gorgorão grosso mondongo e rijo a conversa soluçava. Os rostos enrugavam-se num esforço encortiçado de dentes mordidos a pedir mais mãos e forças.
    As risotas, por vezes zombeteiras, a gosto, francas e desamarradas, pediam um endireitar de costas, até para folgar as cruzes, enquanto uma mão autónoma e ágil entalava a madeixa de cabelo que se libertara, pelo enérgico balouçar do corpo na esfrega e, adejava em desalinho.
    O derisão permitia viver uma vida inconcussa sem experienciar a sensação de desencanto: "éramos felizes à nossa maneira". Pobres mas honrados que outras riquezas não havia. E, esta ainda era inculcada como ferramenta de domínio. (mo. Contínua)

    DSLC
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