As memórias fugiram-lhe, num
ápice, ficaram modorrentas aconchegadinhas, como relíquias, no recanto do seu
íntimo, de onde tinham aflorado.
Era, de novo ,todo só fuga.
Afobado com o sangue a querer
raiar nas maçãs, fez-se dois passos largos, corridos, nervosos, enérgicos e
estirados, que venceram uma leve ondulação e um cômoro sobranceiro que aluía.
Rodou todo apoiado num braço tenso a servir de eixo, com um leve rocegar da pontinha
da aba do casaco numas ervas hirsutas que bordejavam aquela nervura da terra.
Encostou-se ao lavadouro de
tantas mãos, sentiu a sua frescura gélida entrepernas que penetrou no glúteo
até ao osso e, apoiado naquele encosto arrancou uma bota e depois a outra.
Resistiram perras até que cederam como rolha em gargalo de champanhe que só sai
no último momento.
Mergulhou os pés nus, na frescura
perlar e caminhou no rego do lugar para não deixar rasto, enquanto sentia
subir, em pontada, um agradável estremecimento. Foi com a corrente cuspinhando
pequeninos retraços de caule de ervinha rija que a saliva amoleceu e os dentes
golpearam, num entretém, enquanto esteve a esburgar pensamentos nostálgicos.
Se o rego da estrema era terra de
ninguém, porque há regos que têm donos e outros donas,-- os da posse, os do
ciúme--, este era de todos e, por isso, mais tarde partiu o povo em duas hostes
aguerridas que se digladiaram, por causa das sobras correntes, com palavras e
ameaças com a justiça a espreitar nas suas cabeças. Ela esperava sentada no
tribunal, porque não tinha pressa
–“porque tarda mas não falta”-- a esfregar as mãos de contentamento e sorriso
trocista enquanto discorria em monólogo: «estamos sempre carentes de réus no nosso
teatro. venham! venham cá, que eu vos embrulho em papeladas, vos entaramelo em
discurso e vos vou depenando enquanto brinco com a minha balança cega embalada
em retórica eloquente e teatralizada». Era necessário dar serventia à toga!...
Ala! Rego fora, com as botas
pelas orelhas, chapinhava, fingindo calcar, algures e mais acolá, com dois ou
três passinhos miudinhos, os buracos que as “ratas” faziam, por onde a água se
perdia sem chegar ao seu destino. Rodava o pescoço, em todo o curso, e sobre
ele a cabeça, que saltava de um ombro para o outro, com os olhos percorrendo
como periscópio de submarino no largo mar, o plantio, os retalhos de
sementeiras verdes e nesgas de terra trabalhada, e não via movimentos como lhe
convinha. Só os parentes dos grilos, que ripavam nas ervas do combro, saltavam
tontos, surpreendidos por aquele movimento e ruido, que veio interromper o
rumorejar dolente da água.
Um verdinho, com pernas de
saltador de comprimento, pequenino, engraçadinho e fofo, talvez a aprender os
perigos da vida pelos sustos e pelo sofrimento, caiu na corrente. Debatia-se,
qual náufrago indefeso, agarrado aos ciscalhos esbranquiçados de pauzinhos e
ervas. Metia dó!
As circunstâncias da vida
colocaram-nos no mesmo rego. Olhou-o e sentiu-se também naquela fragilidade e
pequenez. Condoeu-se pois percebeu a aflição do inocente: na certeza de que
sentimos melhor o sofrimento do outro quando sofremos. Vergou-se, um pouco, e
olhou melhor. Viu-lhe duas luzinhas prateadas na cabecita e a serrilha das
patitas como pangaias a batalhar, em aflição, na película em procura, vã, de
terra firme.
Caritativamente compreendeu-o
naquela fragilidade absoluta, ainda se lhe quis arribar na alma uma humidade
condoída de sentimentos, de pensamentos e recordações da sua meninice, mas uma
outra voz, vinda também de si,--a razão pragmática--, alertou-o para o perigo
da demora, por isso fechou-os, sufocando-os com lágrimas que o tempo já tinha
secado lá longe.
Verificou que estava a soçobrar.
Aquela graça e pequenez meteu-lhe dó, imbuído de compaixão e carinho esqueceu o
seu dano --porque todos têm direito à vida--, e enternecido, levantou o joelho,
encostou-lhe suavemente o pé e fê-lo emergir, sentiu cócegas de um arranhar
carinhoso e delicado. Quis pegar-lhe com ternura mas o pequeno saltarico,
respeitando a sua natureza, fincou-se num impulso instintivo. « Raspa-te que é
gigante!»
Caiu fora da água. Perdeu-o no
meio das ervas.
A sua cara tornou-se expressiva,
pensativa e um pouco triste com os pensamentos a drapejar : todos somos grãos
de areia insignificantes num mundo imenso de eternidade. Que bicho
engraçadinho, é tão frágil, juntos aos milhares são uma praga terrível, com o
seu apetite polifásico, que nem é bom imaginar! « Tinham-lhe contado, em
pequeno, que em chusma devoravam leiras inteiras enquanto o diabo esfregava um
olho e que até eram capazes de impedir que um comboio andasse naquela pasta
esmagada sobre a linha».
“Sentenciou: O muito corpo junto
sem cabeça e sem coração sempre trouxe, traz e trará destruição!”
No fim do rego levantou a
atenção, que ora trazia na ponta dos pés a chapinhar, como quem brinca, ora
sobre os verdejantes campos de milho e hortas como quem perscruta olhares. E,
na passada sussurrava, de si para si: "Se já fosse a hora da sesta
andariam aqui os canalhos a guardar as milheiras do painço, batendo com uma
pedra numa lata velha para as enxotar, porque pedras em painço maduro também o
malhavam todo e não havia voz tenra que aguenta-se" -- e continuou--
"essas são outras que também são pequenas mas umas chamam as outras e
depois são muitas, sorrateiras caiem rasteirinhas sobre a belga, poisam sobre
as espigas que até as derreiam e, depenam uma leira num instante se as
deixassem. Aquilo para elas deve ser um mimo porque são umas desavergonhadas e
espertas! Até sabem que com o calor os grãozitos do milho-miúdo se soltam
melhor da espiga e enchem o papo...."
Cessou a reflexão e estacou
marcha, poisou as botas, macias e gastas, sobre a erva curta e amarfanhada de
tanto ser pisada pelo corrupio. Mirou os pés, um pouco ossudos, muito
branquinhos, esticou um com o movimento de aquecimento de quem vai tocar piano,
viu os tendões, esculpidos na magreza, a manobrar os dedos como tirantes.
Ganhou postura e empinou um pé
alçado, com a cabeça dos dedos para baixo, para que a água escorresse mais
depressa. Viu as gotas desprenderem-se num pinga, pinga, de goteiras a amainar
até se esfumarem na secura. Passou a mão apressada com leveza, na planta do pé
alçado, num rápido deslizar de ir e voltar. E, por fim, sacudiu a perna num
movimento rápido de chicote a libertar um último borriço.
Deu ainda umas últimas
sacudidelas quase instintivas,-- num tente não cais--, dando pequenos pontapés
a fazer arejo e mais uma sacudidela em jeitinho de coice, que desfez e fez
descer as dobras das calças. Mergulhou-o ainda húmido, quase sem ajuda de mãos
porque um braço livre estava a fazer equilíbrio e o olhar, fingido de
desentendido, tinha outros burros para tocar em redor.
Acomodado o primeiro pé, já com
joanete em afirmação, dentro da bota deformada de tanto suor sorver, balançou-se
num impulso com domínio e arrancou o outro pé da água. Deu-lhe uma passagem
pela tona a lavar a sujidade do lodo persistente que sempre se agarrava.
Repetiu os mesmos cuidados
mecanizados e, sem tardanças, andou e pensou: "Ninguém me deve ter visto
sair, num domingo, e tão cedo? Mesmo que me vejam entrar não virá mal ao mundo
mas se ninguém vir é melhor".
Meteu suavemente a mão ao aldrave
da porta, do quinteiro-- num sosano dissimulado-- fechou-a com cuidados,
encostou-se-lhe um segundo a desfalecer, respirou fundo, levou, em preocupação,
as duas mãos à cabeça e expeliu, naquele lugar seu, toda a tensão que trazia
desde que a guarda o viu e bradou: " alto em nome da lei!"
Agora senhor de si, mas ainda com os pensamentos em
ebulição, colocou, com ligeireza e naturalidade, o pé direito no primeiro
degrau das escaleiras de pedra.
(mo continua)
DSLC
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