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    quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

    A Caçada, - o atalho, a justiça, o gafanhoto e as milheiras-, Janeiro (2015)



    As memórias fugiram-lhe, num ápice, ficaram modorrentas aconchegadinhas, como relíquias, no recanto do seu íntimo, de onde tinham aflorado.
    Era, de novo ,todo só fuga.
    Afobado com o sangue a querer raiar nas maçãs, fez-se dois passos largos, corridos, nervosos, enérgicos e estirados, que venceram uma leve ondulação e um cômoro sobranceiro que aluía. Rodou todo apoiado num braço tenso a servir de eixo, com um leve rocegar da pontinha da aba do casaco numas ervas hirsutas que bordejavam aquela nervura da terra.
    Encostou-se ao lavadouro de tantas mãos, sentiu a sua frescura gélida entrepernas que penetrou no glúteo até ao osso e, apoiado naquele encosto arrancou uma bota e depois a outra. Resistiram perras até que cederam como rolha em gargalo de champanhe que só sai no último momento.
    Mergulhou os pés nus, na frescura perlar e caminhou no rego do lugar para não deixar rasto, enquanto sentia subir, em pontada, um agradável estremecimento. Foi com a corrente cuspinhando pequeninos retraços de caule de ervinha rija que a saliva amoleceu e os dentes golpearam, num entretém, enquanto esteve a esburgar pensamentos nostálgicos.
    Se o rego da estrema era terra de ninguém, porque há regos que têm donos e outros donas,-- os da posse, os do ciúme--, este era de todos e, por isso, mais tarde partiu o povo em duas hostes aguerridas que se digladiaram, por causa das sobras correntes, com palavras e ameaças com a justiça a espreitar nas suas cabeças. Ela esperava sentada no tribunal, porque não tinha  pressa –“porque tarda mas não falta”-- a esfregar as mãos de contentamento e sorriso trocista enquanto discorria em monólogo: «estamos sempre carentes de réus no nosso teatro. venham! venham cá, que eu vos embrulho em papeladas, vos entaramelo em discurso e vos vou depenando enquanto brinco com a minha balança cega embalada em retórica eloquente e teatralizada». Era necessário dar serventia à toga!...
    Ala! Rego fora, com as botas pelas orelhas, chapinhava, fingindo calcar, algures e mais acolá, com dois ou três passinhos miudinhos, os buracos que as “ratas” faziam, por onde a água se perdia sem chegar ao seu destino. Rodava o pescoço, em todo o curso, e sobre ele a cabeça, que saltava de um ombro para o outro, com os olhos percorrendo como periscópio de submarino no largo mar, o plantio, os retalhos de sementeiras verdes e nesgas de terra trabalhada, e não via movimentos como lhe convinha. Só os parentes dos grilos, que ripavam nas ervas do combro, saltavam tontos, surpreendidos por aquele movimento e ruido, que veio interromper o rumorejar dolente da água.
    Um verdinho, com pernas de saltador de comprimento, pequenino, engraçadinho e fofo, talvez a aprender os perigos da vida pelos sustos e pelo sofrimento, caiu na corrente. Debatia-se, qual náufrago indefeso, agarrado aos ciscalhos esbranquiçados de pauzinhos e ervas. Metia dó!
    As circunstâncias da vida colocaram-nos no mesmo rego. Olhou-o e sentiu-se também naquela fragilidade e pequenez. Condoeu-se pois percebeu a aflição do inocente: na certeza de que sentimos melhor o sofrimento do outro quando sofremos. Vergou-se, um pouco, e olhou melhor. Viu-lhe duas luzinhas prateadas na cabecita e a serrilha das patitas como pangaias a batalhar, em aflição, na película em procura, vã, de terra firme.
    Caritativamente compreendeu-o naquela fragilidade absoluta, ainda se lhe quis arribar na alma uma humidade condoída de sentimentos, de pensamentos e recordações da sua meninice, mas uma outra voz, vinda também de si,--a razão pragmática--, alertou-o para o perigo da demora, por isso fechou-os, sufocando-os com lágrimas que o tempo já tinha secado lá longe.
    Verificou que estava a soçobrar. Aquela graça e pequenez meteu-lhe dó, imbuído de compaixão e carinho esqueceu o seu dano --porque todos têm direito à vida--, e enternecido, levantou o joelho, encostou-lhe suavemente o pé e fê-lo emergir, sentiu cócegas de um arranhar carinhoso e delicado. Quis pegar-lhe com ternura mas o pequeno saltarico, respeitando a sua natureza, fincou-se num impulso instintivo. « Raspa-te que é gigante!»
    Caiu fora da água. Perdeu-o no meio das ervas.
    A sua cara tornou-se expressiva, pensativa e um pouco triste com os pensamentos a drapejar : todos somos grãos de areia insignificantes num mundo imenso de eternidade. Que bicho engraçadinho, é tão frágil, juntos aos milhares são uma praga terrível, com o seu apetite polifásico, que nem é bom imaginar! « Tinham-lhe contado, em pequeno, que em chusma devoravam leiras inteiras enquanto o diabo esfregava um olho e que até eram capazes de impedir que um comboio andasse naquela pasta esmagada sobre a linha».
    “Sentenciou: O muito corpo junto sem cabeça e sem coração sempre trouxe, traz e trará destruição!”
    No fim do rego levantou a atenção, que ora trazia na ponta dos pés a chapinhar, como quem brinca, ora sobre os verdejantes campos de milho e hortas como quem perscruta olhares. E, na passada sussurrava, de si para si: "Se já fosse a hora da sesta andariam aqui os canalhos a guardar as milheiras do painço, batendo com uma pedra numa lata velha para as enxotar, porque pedras em painço maduro também o malhavam todo e não havia voz tenra que aguenta-se" -- e continuou-- "essas são outras que também são pequenas mas umas chamam as outras e depois são muitas, sorrateiras caiem rasteirinhas sobre a belga, poisam sobre as espigas que até as derreiam e, depenam uma leira num instante se as deixassem. Aquilo para elas deve ser um mimo porque são umas desavergonhadas e espertas! Até sabem que com o calor os grãozitos do milho-miúdo se soltam melhor da espiga e enchem o papo...."
    Cessou a reflexão e estacou marcha, poisou as botas, macias e gastas, sobre a erva curta e amarfanhada de tanto ser pisada pelo corrupio. Mirou os pés, um pouco ossudos, muito branquinhos, esticou um com o movimento de aquecimento de quem vai tocar piano, viu os tendões, esculpidos na magreza, a manobrar os dedos como tirantes.
    Ganhou postura e empinou um pé alçado, com a cabeça dos dedos para baixo, para que a água escorresse mais depressa. Viu as gotas desprenderem-se num pinga, pinga, de goteiras a amainar até se esfumarem na secura. Passou a mão apressada com leveza, na planta do pé alçado, num rápido deslizar de ir e voltar. E, por fim, sacudiu a perna num movimento rápido de chicote a libertar um último borriço.
    Deu ainda umas últimas sacudidelas quase instintivas,-- num tente não cais--, dando pequenos pontapés a fazer arejo e mais uma sacudidela em jeitinho de coice, que desfez e fez descer as dobras das calças. Mergulhou-o ainda húmido, quase sem ajuda de mãos porque um braço livre estava a fazer equilíbrio e o olhar, fingido de desentendido, tinha outros burros para tocar em redor.
    Acomodado o primeiro pé, já com joanete em afirmação, dentro da bota deformada de tanto suor sorver, balançou-se num impulso com domínio e arrancou o outro pé da água. Deu-lhe uma passagem pela tona a lavar a sujidade do lodo persistente que sempre se agarrava.
    Repetiu os mesmos cuidados mecanizados e, sem tardanças, andou e pensou: "Ninguém me deve ter visto sair, num domingo, e tão cedo? Mesmo que me vejam entrar não virá mal ao mundo mas se ninguém vir é melhor".
    Meteu suavemente a mão ao aldrave da porta, do quinteiro-- num sosano dissimulado-- fechou-a com cuidados, encostou-se-lhe um segundo a desfalecer, respirou fundo, levou, em preocupação, as duas mãos à cabeça e expeliu, naquele lugar seu, toda a tensão que trazia desde que a guarda o viu e bradou: " alto em nome da lei!"
    Agora senhor de si, mas ainda com os pensamentos em ebulição, colocou, com ligeireza e naturalidade, o pé direito no primeiro degrau das escaleiras de pedra.
    (mo continua)
    DSLC

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