Quando chegou ao cimo das escaleiras voltou-se a perscrutar como animal que fareja odores na brisa. A manhã andaria pelo meio, pelo tempo decorrido na sua cabeça e pelas canseiras do corpo teve o pressentimento de que a guarda se ainda não passou já estaria perto a rondar.
Não se enganava, a patrulha já conferenciava a ultimar a estratégia, para o acercar no casulo, enquanto inspecionava, do terraço da portela, o povoado disperso, vendo em cada bairro remendos de branco das casa mais abastada.
O cabo e uma praça iriam dar a volta pelo Banho em demanda do Regedor, enquanto a outra, porque tinha a finura de magreza seguiria em frente e aguardaria até os ver aparecer no fundo do povo.
À entrada, do bairro, havia um caminho fundo, capaz de engolir um carro de pão na acarreta. Descia desembocando no entroncamento um caminho que ligava os dois bairros-- eram como cachos de uvas suspensos numa balança, com um cano de ferro-- enterrado desde a fonte velha-- a derramar água, que fazia de fiel no largo da frontaria dos casarões do morgado. O largo era ponto de encontro, campo de pina e salão de baile. O outro que descia, e ainda desce, bairro abaixo com saída para o Rio e Novainho.
Pegado à casa na maior largueza do cruzamento residia um cepo sofredor, velho, descascado e grosso para estrinçar uns guiços. Via-se no toutiço um debrum de franjinha, com o corpo em frangalhos todo macerado e golpeado, de tanto ter ouvido o matraquear da machada de quem fugiam os guiços retorcidos que no último momento, tiravam a espinha do gume, já para não falar na mão que por vezes parecia tola, sem pontaria nenhuma a golpear fundo. O aconchegar das pancadas, ao longo de anos, tinham-lhe enterrada o pé na terra, dois ou três dedos o que lhe dava toda firmeza de cepo.
Porém, naquele manhã estava também encostado um carro um com calço previdente, de pedra comprida, no rodeiro gaspeado, com a cabeçalha quase a pino na parede de pedra da casa de lavoura com quinteiro pequeno. Havia que proteger o chedeiro e o rodeiro, que não eram lagartos, à hora da sesta da torreira do sol. Era uma carro de bois pequenos que, no caso, era puxado por burros igualmente dóceis na dormência do cio.
A mulher que cirandava viu com um olhar que se fez desentendido, da ponta da varanda, as fardas com os brunidos cromados. Mal levantou a atenção, a querer retirar-se sorrateira, o cabo, sustando o passo, lançou-lhe logo pergunta em remoque autoritário:
"--De quem é isto?" nem teve atrevimento para dar resposta.
"--O que é público é de todos! É para todos usufruírem!" Proferiu o Cabo. Não conheciam a palavra, mas perceberam-na logo sem a mínima dúvida.
Desceram como que acusados apressadamente, mulher, homem e rebento graúdo e, num lufa, lufa, empurraram-no, para dentro, com desculpas. Repetindo: "--Não é costume, não é costume."
A parelha seguiu. Quando já ia adiante, a esconder-se na rua esconsa, sem saída, que morria na porta da casa do regedor, a mulher desabafou:
"--Estavam tão bem na bila. Hoje vai com os azeites!" O homem sussurrou:" --deixo ir, deixo ir..."
A pressa do cabo em apanhar o salafrário na toca, com a sua artimanha pensada, terá sido a safa do agricultor senão talvez colhesse coima de estacionamento...
À passagem da guarda tudo se afugentava. As crianças esquálidas esbugalhavam os olhos e ficavam de aloquete posto procurando proteção, tremiam como viburnos, por temeram que a Guarda os levasse. Muito por culpas de suas mãe que usavam os serviços da guarda, dos ciganos, e do maçaroco, sem o seu consentimento, como instrumentos de educação . "--Estás a fazer asneiras! Espera ai seu maroto! Que eu chamo a guarda que te leva nunstante!"
Miúdos e graúdos, se pudessem, evitavam o encontro mantendo-se discretamente em vigilância, por entre as árvores e touças, na parte mais baixa dos muros e até pelas taladas das paredes de pedra esburacadas. Mantinham-se espantadiços e atentos, plenos de ansiedade, como qualquer espécie na presença de predador. As proibições eram tantas que a guarda, com intento, tinha sempre por onde pegar.
Quem ficava, no seu caminho, fazia-o com alinho e um certo temor contido. Com a guarda, se algum valentão brincava, era sempre à chucha calada ou então quando sabia, pela certa, que ela já tinha dobrado o picoto em retirada.
Só as moças casadoiras arranjadinhas e lépidas não temiam os guardas, assim eles solteiros fossem! Olhavam-nos com aqueles olhinhos brilhantes de maravilhas por saberem das leis da natureza que lhes diziam que os homens diante de mulheres tentadoras, de colo espetado no peito, ficavam hipnotizados deixando-se seduzir pela ideia de prazer, sempre a querer percorrer o caminho dos apetites. E, por outro lado, estes eram um bom partido. Sempre tinham emprego certo que lhes tirariam as tamanquinhas da terra. Ser mulher de guarda era futuro! Melhor, em tais tempos, só marido de professora. Mas que grande profissão!
Os guardas ao passarem, sabendo-lhe o ninho, patrulhavam, rondavam, para se quedarem na presença de virtuais nubentes contemplativos, arregalando tanto os olhos que os fechavam a pequenas coisas. Relevavam a escorrência do leiteiro, das "cortes" da casa, se fosse pequena; as galinhas madrugadoras, a quererem espenujar-se na poeira da rua, e, os bacorinhos brincalhões, engraçadinhos, que no intervalo da teta, se escapuliam para a rua pela gateira da porta com rodapé de zinco, deixando a mãe em aflição a espreitar com o focinho em chamamento.
O guarda se podia , recorria à sua condição, para mandar chalaça figurada:
"--À menina é que eu levava presa de bom gosto", naquela conversa, a arrastar a asa, a querer ser chavelha da treitoura. Ouvia resposta: "--Pois, pois, olha o atrevido! Mas, para me levar presa primeiro tem que me prender e depois não podia rondar mais!". Ao que ele replicava: "--Se fosse carcereiro do que lhe palpita no peito, nada mais me importaria". Nestas e noutras investidas, de igual ou superior quilate, surpreende-se a semente dos corações, num enleio, querendo botar raízes.
Mesmo assim, este versejar não fazia logo farinha. Prender corações dava muito trabalho havia que gastar solas num rondar meloso e persistente. Depois a ocasião, a oportunidade de estarem sós num silêncio lídimo, surgia um brilhinho assombrado nos olhos, a linguagem dos enamorados. Corria o amor a levar a água ao seu moinho como a seiva da árvore que ninguém vê no seu caminho mas vai florir na pontinha do ramo.
Elas, se rendidas, usavam de arte para que não se desse conta, até lhes arrancarem um gosto de ti num sussurro ronronado e coladinho a fazer saltar o coração. Ficavam-lhes na mão, como o peixe que morre, comprometidos.
A praça que acompanhava o cabo, na demanda do Regedor, era destas; um garboso e esbelto jovem cheio de sonhos, por sentir na sua vida mais futuro que passado e, muitas certezas, próprias de quem pouco viveu e pouco viu. Possuidor de um dinamismo intrépido com a formação, ainda fresca, na sua cabeça o corpo pedia-lhe constantemente ação e ímpeto.
Ao invés, a praça que tinha a fina coelheira presa com o fiador da pistola como trela, tinha família e anos de serviço. Encostou-se, a fazer tempo, numa fraca sombra, na borda do caminho ingreme, para se dissimular dos olhares, um pouco acima da casa do Adolfo Portela, de onde guardava, com o olhar, o cruzamento do Santo Antão.
Quando os vislumbrasse, acompanhados pelo Regedor, desceria até à curva do caminho ao seu encontro. Ficou de atalaia.
Ouviu por cima da sua cabeça, vindo na sua direção, um bulício de vozes femininas a esparralhar alegria. Afincou toda atenção naquele barulho movente e percebeu que dobravam o altinho da portela. Levantou a cabeça e concluiu: "vão descer por aqui". Como não queria aquele encontro, arredou-se do caminho e foi aproveitando o tempo. Encostou o chicote do fiador à ponta de umas fronças de giesta dobrou-as abraçando-o e com uma lançada prendeu a finura da magreza. Deu dois passos e de costas para o mundo pôs-se a fazer,-- usando dois dedos da mão direita para segurar--, sobre umas ervas altas com torções de ancas para abafar o barulho do expelir. Apertou a carcela e pensou: "um homem até para isto, e para aquilo, precisa do polegar e ainda há quem diga que o indicador é o dedo mais importante da mão!" Deve ser porque permite apontar os pecados alheios!
A propósito "daquilo"; um certo homem abeirou-se da cozinha, sem que lhe fosse dito que o jantar estaria pronto, a mulher não gostou e quase a finalizar diz-lhe:
"--Sai daqui que estás a estorvar, pra que vens prá qui cedo não sabes fazer nada!". Ele respondeu-lhe : "--Sei o que sei e o que ainda não aprendi." Tornou, sem o olhar, a acabar o que estava fazendo e embrulhou-os a todos no dichote. "Vós os homens nem sabeis pregar um botão da carcela!".
Ouve uma pausa que pareceu longa. A mulher julgou-se com o troféu na unha. O homem falava pouco, talvez por pensar muito e, numa voz grave, pausada vinda do silêncio expectante retorquiu.
"-- Diz-me cá se não fossem as mulheres para que é que os homens precisavam da carcela?". " Só pensais nisso, também serve para outra coisa!"-- acrescentou. Cheio de vagares com palavras lesmas, preguiçosas e arrastadas deixou-as sair pesando-as e aferindo-as pausadamente:
"--Pois serve... A mãe natureza que tudo faz perfeito, pelo caminho mais curto, não gastava tempo a fazer uma peça, no corpo, que já não serviria para nada quando elas nada querem e eles nada podem."....
Fingiu que não o ouvira e, de modo lampeiro, concluiu:
"--Senta-te mas é, que o teu mal é fome!". O homem, em silêncio, conformou-se pigarreando levemente, ruído que foi sufocado pelo arrastar, no sobrado, dos pés da cadeira robusta e tosca....
Mão mais que mão, mão civilização, mão versátil instrumento. É o mindinho que por ser mínimo nos permite repousar o queixo, a produzir pensamentos, sem que a vista se queixe da estocada da falangeta de unha a despontar. Experimentem colocando o indicador no lugar do mindinho e dir-me-ão!
Mas o dedo polegar mais curto e robusto para enfrentar a maioria, que se lhe opõe num confronto leal, é mais dedo que os demais. Não se encosta no agir? Afirma-se em oposição solitário e solidário. Demonstra-nos que diferentes posições quando cooperantes enriquecem as ações.
O dedo polegar, que modelou o barro e -- para o bem e para o mal-- em oposição tudo segura, corta, faz e desfaz: segura a flor que se oferece; corta o cordão umbilical, dá a papa ao menino e o pão consagrado - Corpos Christi. Faz e desfaz os nós do lenço, da gravata e dos atilhos dos sapatos; segura o cinzel do escultor e do pedreiro; o pincel do pintor e o lápis do petiz a fazer-se sábio. Segura a agulha que borda, o pente que penteia e até desfolha o mal-me-quer, e o bem-me-quer ...O polegar é duma ductilidade e versatilidade inescusável ainda que não tenha servido para medir o côvado.
(Nos dias que correm quando a tecnologia fervilha lá está ele, em oposição, digitando SMS (Safety Management System)).
O barulho próximo interrompeu-lhe a preleção que dava e recebia. Olhou e reparou que a magreza não se quis ficar atrás. Fazia.
Passavam as crentes, a caminho da Igreja, puxadas por vontade, devoção e fé. A finura a dar conta de tudo não latiu, não se sabe se percebeu que o guarda não o quereria ou se foi para que quem passava não a visse naquele preparo.
(mo continua)
DSLC
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