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    domingo, 26 de abril de 2015

    A Caçada, o guarda, o Santo e o lobisomem ABRIL 2015


    Caiu-lhe em desfalecimento o corpo todo atordoado da emoção aperrada rodando em delíquio, enquanto se desembaraçava um profundo e espesso suspiro. Assim desamparado e desfraldado, deixou-se cair sobre um penedinho de xisto bem negro mas absoluto de beleza agreste e áspera.
    Entorpecido ainda, foi fazendo lentamente pequenos espreguiçamentos de gato que acorda, seguidos de enérgicos safanões de fantoche às pernas e aos braços para os libertar da dormência. Com a frase ouvida a joeirar-lhe na cabeça soltaram-se-lhe as primeiras palavras num solilóquio: "Apertadinho estava eu! A gente mete-se em cada alhada..." Balbuciava para uma velha giesta esgrouviada, sofrida e seca no rés, que continuava resistindo viçosa nas farripas, a querer florir ao beijar a dádiva solar. 
    Quase refeito, com a Finura dependurada na ponta do fiador, voltou ao ponto de vigia e espera. Olhou para ver se já lá vinham o cabo, o camarada e o regedor. Via em baixo, à distancia de uma calhoada reboluda em mãos calejadas em braços trabalhados, os remendos recortados no caminho, num luze que luze espelhado do sol na tremula das folhagens a reverdecer nos ramos das árvores de fruto. Conclui que não. 
    Com devoção, lançou um olhar pleno de gratidão e preces ao cruzeiro de Santo Antão nas mãos de quem tinha colocado toda a esperança de não ser visto. 
    Deu graças e, encetou um monólogo com a memória a seu lado: 
    " O Santo Antão foi um Monge Copta iletrado que viveu décadas no deserto isolado em meditação. No seu isolamento foi várias vezes tentado pelo demónio, mas resistiu devotamente. As datas da sua vida são inseguras, teria nascido entre 250 e 260 na aldeia de Coma (Kiman-el-Arus) no médio Egipto...Estoica e devotadamente resistiu às tentações do demónio mantendo-se, sem vacilar, fiel à fé cristã" ...
    As gentes dos nossos lugares também resistiam às tentações do demónio como podiam conquanto temessem as suas artimanhas e embustes. Sabedoras de que os demónios tinham uma predileção pelos entroncamentos e cruzamentos de caminhos, situados à entrada e à saída dos povoados, onde se plantava escondido com tempo de sobra a tentar as almas incautas.
    Crentes até ao cerne da alma, eram possuidores de uma sabedoria ancestral escorada no "diz que disse" que vinha do principio dos tempos: dizia-se que se um Santo, "alminhas" fosse roubado a outro bairro ou povoado contanto as gentes daqueles não dessem pela sua falta até ao nascer do sol, os seus poderes protetores e milagreiros ficariam reforçados e, os direitos de posse consagrados. 
    Narraram que os do Banho estariam necessitados de proteção contra estas forças demoníacas, pois, dizia-se e afirmava-se, com temor, que o entroncamento de caminhos, na entrada do seu bairro do lado do Novainho e Rio, era usada por um lobisomem como espojadouro... 
    "Era nos cruzamentos que se espojavam os lobisomens. Homes que durante a noite se transformabam em cabalos e só voltavam à cama depois de darem ronda a sete freguesias. Aquilo apanhabam as mulheres a dormir, diziam que o ... do Banho era. Tudo porque lhes tinham faltado palabras no batismo. Parece que era os padrinhos que se esqueciam! O padre debeas saber direitinhas em carreirinha! É o oficio dele!"...
    Esta narração no lugar do lobo tinha um cavalo, vá-se lá saber porquê!?

    As vozes do povo conheciam a cura para a horrenda e demoníaca transfiguração noturna de um pobre desgraçado, bastaria, para tal, que o lobisomem fosse enfrentado e picado por um ferrão, bem afiado, de uma aguilhada em uso e, logo que jorra-se uma gota de sangue, o corpo e a alma do condenado ficariam livres de tal tormento para todo o sempre. Porém, nem toda a coragem do reino se atreveria a tal feito! Melhor seria outro caminho ainda que tolhido de riscos e canseiras...
    Então, o inverno já ia longo, viram as luas, escolheram a noite com algum luar mas invernosa em que a chuva se desprendesse sobre tudo; também no dia seguinte não podia ser dia de fazer muito menos dia de feira porque se assim fosse haveria almas de alevanto no breu pela madrugada. 
    Pensaram-na com tempo, debaixo do chapéu do ainda jovem morgado, prepararam tudo e puseram tudo a jeito: uns bons ferros uns fortes outros aguçados e apropriados; uma boa junta de bois, animais silenciosos; um carro robusto; uns molhos de feno, muita argúcia, audácia e bravura. Assim apetrechados e decididos foram, pela calada da noite .uma mão cheia de homens numa ansiedade latente. Nesta façanha não podia ser usada força contra outrem, porque logo que descoberta a afronta vinha o conflito gorava-se o intento e esvaia-se toda a virtude do Santo. 
    Chegados Junto das alminhas, antes de as encetarem, fizeram o sinal da cruz com gestos atamancados, onde até parecia que as mãos atrapalhavam, eram homens de muita fé e pouca reza. Deus falava-lhes pelo coração e não pelos ouvidos, depois cada qual dirigiu-se para a sua empreitada: uns montaram vigia à distancia nos caminhos que confluíam, enquanto outros, o arrancavam do poiso, bloco a bloco cuidadosamente riscando a contra face para lhe saber a cama , mais tarde, sem qualquer dúvida, embora as imagens pintadas nos azulejos falassem ao olhar da devoção e da estética. 
    Despegando e carregando, num tira aqui acama ali, para manter a imaculabilidade, que o chão era sítio impuro, e não deixar vestígios. Para controlar o cantar do eixe tinham, em tempo, alargado um bocadinho as treitoiras e lambido com borras de azeite, onde era necessário, não fosse este, mesmo distraído, lançar o seu gemido lancinante no sono da noite. Ainda para abafar o barrulho do rodeiro empanaram-lhe as rodas com mantas de farrapos impedindo assim as da chapa de trilhar as pedras e dizer quem ia e onde. 
    Só não calçaram meias aos animais, a vestir canelos, porque estes negavam-se a tais luxos por sentiram as patas a fugir-lhe para a dança, maneiras que mesmo castrados não queriam e, por outro lado, sem bons apoios não faziam força.
    Um cuidava da junta, que estava posta ao carro ensimesmada, dando-lhe feno à mão. Dava também, de quando em vez, feno para a cama dos blocos de pedra esquadriados e desmanchados, como se fossem ovos em cesta a caminho da feira em braço de camponesa diligente que só deixou no ninho o endez. 
    Com cuidados trabalhavam depressa e, logo que apanharam o carro carregado cobriram-no, com o feno sobrante, para melhor encovilhar a carga. Não usaram a palha centeia para esta cama porque, os bois preferiam o feno e aquela escorregava, sem o enxergão e, luzia aos raros raios de luar.. 
    Andor com eles que se faz tarde porque noite já era! Melhor que se faz cedo! Porque o dia viria.
    Nada, nem ninguém, foi deixado para trás: os que guardavam recolheram-se ao arremedo do piar do mocho e passaram a batedores e a guardas de flanco da procissão pelos campos onde o rodeiro empanado riscava de mansinho a terra mole, vestígios que a chuva logo vassourava. 
    (mo. continua)
    DSLC
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