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    quarta-feira, 27 de maio de 2015

    A Caçada, o roubo do Santo Antão e os seus dons, maio2015



    O especial carreto, de divino sem forma, seguiu caminho esconso, desceu à Fontinha, atravessou as terras do morgado, entrou, pelo portelo, no caminho da fonte da Granja, desceu às hortas e apanhou o caminho do Banho até que chegou em procissão silenciosa, pelo meio da noite, ao regatinho do Lâmpada, antes do bairro dalém, que agora aparecia no aquém e dormia.
    Vinha, sem demora, o especial encargo de silhuetas silenciosas na noite. A junta experiente sem desquebra seguia o vulto que marcava o caminho, na penumbra, o carro seguia a junta, atrás arrastava-se, amarrado às chedas do rodeiro, um dos destemidos, sempre a vigiar e a compor a carga, para que nada ficasse ao laréu. Todos envoltos pelas sombras fuscas e fugidias ora fazendo-se e refazendo-se em caretas de aguarela pelos campos e muros dos caminhos.
    Pensativos e cheios de cautelas temeram que os fragaredos duros e esbranquiçados da estreita rua os anunciassem no arrouço ao roerem nas chapas protetoras das rodas do rodeiro. Lembraram-se ainda dos cães que nunca foram moucos e podiam ladrar, ainda que a tais horas ninguém os açulasse, acordando o vale da Levandeira (motacilla lugens).
    Então para que nada os encravelhasse contornaram pela Fonte Velha:
    Ligeiros descarregaram tudo e empelouricaram o Santo, sobre uma cópia da base que um artista, com pancadas moles, tinha ficado a construir logo que o povo se recolheu nas mantas. Pois, tudo tinha sido planeado reconhecido e medido pela calada. Mas, todos tinham mantido o segredo dos planos do roubo do Santo Antão. Os casados, poucos, só o disseram às suas mulheres, em palavras pequenas, depois do gadunho da ceia, porque não tinham mais como esconder. Os solteiros, se tinham namoradas, consta que nunca o disseram.

    Estava quase: a junta foi recolhida à manjedoura, os apetrechos aos seus lugares e todos os que já tinham feito o que lhe competia, na arriscada empreitada, à deita tardia antes que o galo cantasse.
    Para trás só ficou um vigia, com olhos de mocho, um mestre e um ajudante. Com a pouca luz, do raiar da aurora, o mestre deu os últimos retoques na reconstrução. Ao seu olhar de retiro, pareceu-lhe que o Santo lhe deu a bênção da nova morada.
    Recortado na luz que clareava, o Santo Antão, até lhes pareceu empoado a cintilar sentidos que vergam.
    Feito o temerário feito, os que ficaram rasparam-se também, pé ante pé, como silhuetas encaramonadas e remeteram-se todos ao silêncio até ao sepulcro
    (Assim ficaram os de Cimo de Vila necessitados de proteção do lado Norte. Só a antroponímica se perpetua hoje como herança e alusão.)  
    Os de Cima de Bila não tardaram a dar conta. Sentiram a lostra e acorreram a zunir. Ouve alarido nas redondezas! Falatório resmungado e discussão entamoada no largo do Toural e na Fonte. Descobriram que não foram os de fora, foram os outros que também eram dos nossos. E que fazer se o Banho era o bairro do Morgado? Morgado que era quem dava o risco, trabalho a meio mundo e broa a outro meio, ouve comedimento, só uns poucos persistentes com a raiva a encrespar-se pensaram no resgate do desaforo.
    Mas agora o Santo Antão," alminhas" não estava numa borda do povoado encontrava-se implantado no vértice de um triangulo que liga os três bairros que até passaram a sentir-se mais protegidos, nas inquietações da existência. Então vigiaram-no de ouvido bem afiado, noites e noites a fio, num está feito está feito, até que a fúria, dos ofendidos, primeiro deixou de ferver e depois continuou arrefecendo, porque a natureza não pára de trazer uns e de levar outros. Vontade não faltaria mas foi faltando a enseja. Entrar no local agora e sair de surpresa resgatando o Santo seria uma impossibilidade.
    O tempo foi-se encarregando de assentar as pedras sobre o ressentimento. O morgado teria sido conivente, talvez até autor moral, o poder da igreja, local, foi complacente, porque no seu entender o Santo ali estava mais perto das gentes e, por sua intercessão as gentes mais próximo de Deus.
    A presença, doravante, do Santo no entroncamento afugentava os demónios, impregnava o espaço envolvente de sagrado e dava proteção ao povo. Os homens não passavam sem tirar o chapéu, as mulheres sem rezar e as crianças sem fazer o sinal da cruz. Nesta relação de devoção contemplativa o povo depurava-se e espargia-se de pureza interior sempre que passava.

    Por outro lado, e não menos importante, naquele mundo o Santo também protegia os animais domésticos a troco de missas e moedinhas, do tamanho das posses e da devoção, que tiniam no fundo da caixa de esmolas!
    Os usos recomendavam que se encomendassem, à proteção do Santo, uma leitoa prenhada no fim do tempo que paria pela primeira vez, a quem a dona fazia a cama de lavado com palavras e carinhos a ganhar intimidade de parteira enquanto fazia ecografias com a ponta dos dedos, coçando a coiracha a contar vidas que espevitadas faziam ondinhas na grande e elástica barriga da larega . Fazia como tinha visto fazer e tendo filha, logo em menina, chamava-a para que esta aprendesse, como ela tinha aprendido, saberes da vida que acrescentavam valor.
    A zelosa mãe aproximava-se e afagava a futura mãe primeiro com palavras, até lhe ouvir grunhidos amigáveis e condescendentes e, de seguida coçava-lhe o lombo e a enorme barriga, enquanto ela se ia estirando de mansinho sobre as palhas:
    "-- Anda cá não tenhas medo. Bez as ondinhas filha? São os requinhos que estão lá dentro! Se coçares eles respondem. Bá não tenhas medo, anda!"
    A mãozita queria o dedito ia e mexia, mas a cabeça temia e o braço logo fugia! ...Incitada, a pequenita, tentava e conseguia e depois até queria, gostava e repetia com alegria.
    "-- Pronto agora já chega! A reca precisa de descansar!"
    Olhava. Pensava e, muito intrigada perguntava:
    "-- O mãe quem pôs os requinhos lá dentro?
    -- É um milagre!... Quando cresceres compreendes.... Olha foi Jesus!"
    Também quando uma godalha ou uma cordeira, encomendada, paria duas crias,-- coitadinhas que assustadas andavam--, era uma riqueza acrescentada, tudo por obra do Santo Antão que também fazia estes pequenos milagres, que são os da vida, para bem do povo. Este conhecedor das palavras bíblicas de Moisés-- "Os primogénitos são para o Senhor"-- não passava sem ser generoso e o Santo recebia a recompensa que era sua por direito....
    O tempo correu quase dois séculos a enmorrinhar a vontade, mas eis que, sem saberem o porquê, nos de Cimo de Vila sobrevinha uma lembrança e, ainda continuavam a apedrejar os do Banho à saída da escola como resgate do melindre.
    Mas logo ao outro dia, era um dia em cheio, a infância continuava, as amizades floresciam e todo mundo brincava no recreio!
    (mo. continua)
    DSLC
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