O especial carreto, de divino sem forma, seguiu caminho
esconso, desceu à Fontinha, atravessou as terras do morgado, entrou, pelo
portelo, no caminho da fonte da Granja, desceu às hortas e apanhou o caminho do
Banho até que chegou em procissão silenciosa, pelo meio da noite, ao regatinho
do Lâmpada, antes do bairro dalém, que agora aparecia no aquém e dormia.
Vinha, sem demora, o especial encargo de silhuetas
silenciosas na noite. A junta experiente sem desquebra seguia o vulto que
marcava o caminho, na penumbra, o carro seguia a junta, atrás arrastava-se,
amarrado às chedas do rodeiro, um dos destemidos, sempre a vigiar e a compor a
carga, para que nada ficasse ao laréu. Todos envoltos pelas sombras fuscas e
fugidias ora fazendo-se e refazendo-se em caretas de aguarela pelos campos e muros
dos caminhos.
Pensativos e cheios de cautelas temeram que os fragaredos
duros e esbranquiçados da estreita rua os anunciassem no arrouço ao roerem nas
chapas protetoras das rodas do rodeiro. Lembraram-se ainda dos cães que nunca
foram moucos e podiam ladrar, ainda que a tais horas ninguém os açulasse,
acordando o vale da Levandeira (motacilla lugens).
Então para que nada os encravelhasse contornaram pela Fonte
Velha:
Ligeiros descarregaram tudo e empelouricaram o Santo, sobre uma cópia da base que um artista, com
pancadas moles, tinha ficado a construir logo que o povo se recolheu nas mantas.
Pois, tudo tinha sido planeado reconhecido e medido pela calada. Mas, todos
tinham mantido o segredo dos planos do roubo do Santo Antão. Os casados,
poucos, só o disseram às suas mulheres, em palavras pequenas, depois do gadunho
da ceia, porque não tinham mais como esconder. Os solteiros, se tinham
namoradas, consta que nunca o disseram.
Estava quase: a junta foi recolhida à manjedoura, os
apetrechos aos seus lugares e todos os que já tinham feito o que lhe competia,
na arriscada empreitada, à deita tardia antes que o galo cantasse.
Para trás só ficou um vigia, com olhos de mocho, um mestre e um
ajudante. Com a pouca luz, do raiar da aurora, o mestre deu os últimos retoques
na reconstrução. Ao seu olhar de retiro, pareceu-lhe que o Santo lhe deu a
bênção da nova morada.
Recortado na luz que clareava, o Santo Antão, até lhes
pareceu empoado a cintilar sentidos
que vergam.
Feito o temerário feito, os que ficaram rasparam-se também,
pé ante pé, como silhuetas encaramonadas
e remeteram-se todos ao silêncio até ao sepulcro
(Assim ficaram os de Cimo de Vila necessitados de proteção do
lado Norte. Só a antroponímica se perpetua hoje como herança e alusão.)
Os de Cima de Bila não tardaram a dar conta. Sentiram a
lostra e acorreram a zunir. Ouve alarido nas redondezas! Falatório resmungado e
discussão entamoada no largo do
Toural e na Fonte. Descobriram que não foram os de fora, foram os outros que
também eram dos nossos. E que fazer se o Banho era o bairro do Morgado? Morgado
que era quem dava o risco, trabalho a meio mundo e broa a outro meio, ouve
comedimento, só uns poucos persistentes com a raiva a encrespar-se pensaram no resgate do desaforo.
Mas agora o Santo Antão," alminhas" não estava numa
borda do povoado encontrava-se implantado no vértice de um triangulo que liga
os três bairros que até passaram a sentir-se mais protegidos, nas inquietações
da existência. Então vigiaram-no de ouvido bem afiado, noites e noites a fio,
num está feito está feito, até que a fúria, dos ofendidos, primeiro deixou de
ferver e depois continuou arrefecendo, porque a natureza não pára de trazer uns
e de levar outros. Vontade não faltaria mas foi faltando a enseja. Entrar no
local agora e sair de surpresa resgatando o Santo seria uma impossibilidade.
O tempo foi-se encarregando de assentar as pedras sobre o
ressentimento. O morgado teria sido conivente, talvez até autor moral, o poder
da igreja, local, foi complacente, porque no seu entender o Santo ali estava
mais perto das gentes e, por sua intercessão as gentes mais próximo de Deus.
A presença, doravante, do Santo no entroncamento afugentava
os demónios, impregnava o espaço envolvente de sagrado e dava proteção ao povo.
Os homens não passavam sem tirar o chapéu, as mulheres sem rezar e as crianças
sem fazer o sinal da cruz. Nesta relação de devoção contemplativa o povo depurava-se
e espargia-se de pureza interior sempre que passava.
Por outro lado, e não menos importante, naquele mundo o Santo
também protegia os animais domésticos a troco de missas e moedinhas, do tamanho
das posses e da devoção, que tiniam no fundo da caixa de esmolas!
Os usos recomendavam que se encomendassem, à proteção do
Santo, uma leitoa prenhada no fim do tempo que paria pela primeira vez, a quem
a dona fazia a cama de lavado com palavras e carinhos a ganhar intimidade de
parteira enquanto fazia ecografias com a ponta dos dedos, coçando a coiracha a
contar vidas que espevitadas faziam ondinhas na grande e elástica barriga da
larega . Fazia como tinha visto fazer e tendo filha, logo em menina, chamava-a
para que esta aprendesse, como ela tinha aprendido, saberes da vida que
acrescentavam valor.
A zelosa mãe aproximava-se e afagava a futura mãe primeiro com
palavras, até lhe ouvir grunhidos amigáveis e condescendentes e, de seguida
coçava-lhe o lombo e a enorme barriga, enquanto ela se ia estirando de mansinho
sobre as palhas:
"-- Anda cá não tenhas medo. Bez as ondinhas filha? São
os requinhos que estão lá dentro! Se coçares eles respondem. Bá não tenhas medo,
anda!"
A mãozita queria o dedito ia e mexia, mas a cabeça temia e o
braço logo fugia! ...Incitada, a pequenita, tentava e conseguia e depois até
queria, gostava e repetia com alegria.
"-- Pronto agora já chega! A reca precisa de
descansar!"
Olhava. Pensava e, muito intrigada perguntava:
"-- O mãe quem pôs os requinhos lá dentro?
-- É um milagre!... Quando cresceres compreendes.... Olha foi
Jesus!"
Também quando uma godalha ou uma cordeira, encomendada, paria
duas crias,-- coitadinhas que assustadas andavam--, era uma riqueza
acrescentada, tudo por obra do Santo Antão que também fazia estes pequenos
milagres, que são os da vida, para bem do povo. Este conhecedor das palavras
bíblicas de Moisés-- "Os primogénitos são para o Senhor"-- não
passava sem ser generoso e o Santo recebia a recompensa que era sua por
direito....
O tempo correu quase dois séculos a enmorrinhar a vontade, mas eis que, sem saberem o porquê, nos de
Cimo de Vila sobrevinha uma lembrança e, ainda continuavam a apedrejar os do
Banho à saída da escola como resgate do melindre.
Mas logo ao outro dia, era um dia em cheio, a infância
continuava, as amizades floresciam e todo mundo brincava no recreio!
(mo. continua)
DSLC
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