As pernas distraídas como tolas num arrastar de pêndulo sem
retorno foram e a sola das botas aplanava o toutiço aos torrões dos regos da
lavrada, levando o corpo do guarda que parecia sem vontade própria para o fundo.
Quedou-se dolente com os pensamentos a zunirem-lhe em volteio.
A Finura distraída como ia rodou na tensão do fiador coleira e prostrou-se à
sua frente. Recompôs-se e ajeitou-se sobre as patas traseiras a querer ser
gente....
A manifestação popular da cultura religiosa, tão portuguesa,
estava agora à distância do branco dos olhos que refletiam fotismo, colorido
das flores devoção que mãos femininas colhiam e traziam em oferenda para embelezar
o lugar, sempre varrido, porque o sagrado é pureza e luz...
Na construção de granito, como andor que repousa no lajedo do
adro à espera de ombros, brilhavam as imagens sacras pintadas na azulejaria
azulada e branca que santificavam o rasgo da alma que o cinzel, em mãos masculinas
gretadas, ásperas e precisas, lavrou logo na pedreira para roubar peso ao
carreto. O olhar devoto adoçou-se-lhe aperreado na intimidade e quedou-se-lhe
na pequena cruz cimeira em écfora. Então, toda a pedra que foi só fraga
granítica bruta, cantroço na
montanha, há bem há, falava-lhe
agora, pela transmutação sofrida, em meditação e contemplação, de céu e do céu
com grandor...
A Finura da magreza de olhos brilhantes, vendo-o tão absorto e
imóvel foi-o retratando: " era atarracado, sobre o unto, com a barriga a
arredondar em aduela de pipo empertigado a rebentar aro. Pescoço curto e
robusto, de rosto a fugir para o prognata-- um pouco picado das bexigas. A
cabeleira com clareira delimitada por um refego arredondado de tanto usar o
capacete ou o "decalitro" ou ainda o "c. d'égua".
No seu entender não era "má bicho", fora a farda e
a espingarda, tinha um olhar dócil e benévolo."
O guarda pensativo desceu a atenção do etéreo e, tocado pelo
olhar melancólico e doce da prisioneira que o observava, como que a perguntar-lhe,
quando é que isto acaba?
--Porque tudo acaba!
Quando é que me devolves a liberdade? Não lhe respondeu,
porém, deixou os seus pensamentos continuarem a florescer e falou-lhe da ichó que o cabo armara:
"--Sabes, minha linda, o Cabo vai usar-te, como furão,
para ferrar o teu dono na lura. Vais ser tu, na tua inocência, que no-lo vais
trazer às nossas mãos e, depois um interrogatória bem conduzido ao pecado e, da
assunção do pecado à culpa é um saltinho. "
Escutava-o condescendente, por se saber parte da conversa,
respondendo-lhe com um olhar e, dois ou três acenos de rabo de quando em vez.
Os pensamentos uma vez libertos ganham autonomia e, assim,
continuaram discorrendo sobre as coisas da vida: "--Não era preciso tanto,
andamos nisto desde o raiar. Quem foge não quer guerra! Se o caso fosse de vida
ou de morte, ai sim ,tinha que se agir veloz e com autoridade. Mas se não
tivesse que ser tanto melhor. Neste caso querer apanhar o pobre, à mão, na sua
própria casa a todo custo era demais."
Os anos de serviço, amoleceram-no, foram-lhe ensinando a
relativizar a força da lei. A sua consciência reflexiva mostrou-lhe que nem
sempre o que é legal é justo. E, nos muitos anos de serviço viu passar, pela
penumbra sombras de poder, muitos empenhos de gente gorda. Casos houve em que
constatou que a lei era frouxa para os possidentes e poderosa com os fracos!
Por isso, fruto da sabedoria colhida da reflexão e da experiência de vida,
maturada com o tempo, foi despontando na sua consciência uma moinha
inconsolável que lhe rogava para usar a autoridade e a lei temperada com o
coração.
Mas, no caso, conformava-se, em parte, com o querer
persistente do Cabo, havia que apresentar serviço. O maioral tinha açoitado a
sua competência, picando os seus brios e os da corporação, com palavras azedas
e cortantes, que lhe ficaram a morder o orgulho...
O Cabo mais a Praça, ainda de sangue na guelra, chegaram e
abeiraram-se do portal de duas folhas chapeado a zinco e ficaram parados de
cabeça na ponta dos pés, procurando com os olhos rasantes movimentos na varanda
ou no quinteiro e ruídos, com as orelhas, no interior da casa do Regedor. Nem
sombra de gente foi vista, nem pio de ruído ouvido.
A Praça meteu a mão à aldraba da porta, rodou, empurrou e
abriu-a, chamou de pronto e não recebeu a resposta reclamada. Uma leve
preocupação começou a tomar conta do ânimo do Cabo que contava com o regedor
para elo da corrente do seu plano. A guarda sentia-se observada, mas ninguém se
mostrava a perguntas.
Conheciam-lhe os usos, de longos anos de relação,
pareceu-lhes cedo para já ter saído para a missa. Inquietos atravessaram o
quinteiro, com passos enérgicos enchumaçados, saíram pela estreita porta e
atravessando a eira continuarem a procura na horta da cortinha...
No bairro Novinho, sem saber o que se passava no bairro mais
a cima, o caçador furtivo continuava macambuzio a dissecar preocupações e
dúvidas na varanda. Deu mais dois ou três passos, sem querer acordar o tabuado
e encostou-se. Escondeu um braço, até à axila através do postigo da porta da
cozinha e tateou sem falhas, rodou o fecho taramela enquanto encostava o
encontro. Sumiu-se. Ficou, no ar, um ranger gemido de porta e dobradiças.
Entrou lastimoso de cabeça pendida. Um clarão de luz entrou à
sua frente, cerrou a porta e pô-la fora, na varanda. Era luz em demasia para o
seu estado d'alma.
A mulher sobressaltou-se:
Naquele dia ele não tinha tossicado aquela tosse pigarreada
de quem se anuncia. Assoberbada nas tarefas de ecónomo, levantou os olhos, numa
expressão a inflar o intercílio e percebeu que aí vinha desgraça. É sabido que
as mulheres percebiam e percebem quase tudo e quando querem do que querem nada
lhes escapa!
As crianças, em repolho à volta das saias da mãe e da
fogueira, fizeram silêncio e quedaram-se direitinhas, não se sabe se por medo
se por respeito ou por ambos, mostrando um sentimento, ora de receio, ora de
veneração: os tempos eram outros. Ficaram vozitas sufocadas em olhitos
luminosos e orelhas atentas. Depois lá foram dando passinhos entrementes, até
retomaram um tagarelar contido por perceberem que havia algo feio. Na
inocência, de quem pouco entende, continuaram no seu mundo de crianças: a nossa
eternidade terrena.
(mo. continua)
DSLC
Cantroço: grande pedaço partido à bruta.
Há bem há: há muito tempo
Ichó: armadilha, tipo alçapão, para apanhar perdizes ou
coelhos.
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