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    domingo, 28 de junho de 2015

    A Caçada, o retrato e a voz da consciência, junho 2015



    As pernas distraídas como tolas num arrastar de pêndulo sem retorno foram e a sola das botas aplanava o toutiço aos torrões dos regos da lavrada, levando o corpo do guarda que parecia sem vontade própria para o fundo.
    Quedou-se dolente com os pensamentos a zunirem-lhe em volteio. A Finura distraída como ia rodou na tensão do fiador coleira e prostrou-se à sua frente. Recompôs-se e ajeitou-se sobre as patas traseiras a querer ser gente....
    A manifestação popular da cultura religiosa, tão portuguesa, estava agora à distância do branco dos olhos que refletiam fotismo, colorido das flores devoção que mãos femininas colhiam e traziam em oferenda para embelezar o lugar, sempre varrido, porque o sagrado é pureza e luz...
    Na construção de granito, como andor que repousa no lajedo do adro à espera de ombros, brilhavam as imagens sacras pintadas na azulejaria azulada e branca que santificavam o rasgo da alma que o cinzel, em mãos masculinas gretadas, ásperas e precisas, lavrou logo na pedreira para roubar peso ao carreto. O olhar devoto adoçou-se-lhe aperreado na intimidade e quedou-se-lhe na pequena cruz cimeira em écfora. Então, toda a pedra que foi só fraga granítica bruta, cantroço na montanha, há bem há, falava-lhe agora, pela transmutação sofrida, em meditação e contemplação, de céu e do céu com grandor... 
    A Finura da magreza de olhos brilhantes, vendo-o tão absorto e imóvel foi-o retratando: " era atarracado, sobre o unto, com a barriga a arredondar em aduela de pipo empertigado a rebentar aro. Pescoço curto e robusto, de rosto a fugir para o prognata-- um pouco picado das bexigas. A cabeleira com clareira delimitada por um refego arredondado de tanto usar o capacete ou o "decalitro" ou ainda o "c. d'égua".
    No seu entender não era "má bicho", fora a farda e a espingarda, tinha um olhar dócil e benévolo."
    O guarda pensativo desceu a atenção do etéreo e, tocado pelo olhar melancólico e doce da prisioneira que o observava, como que a perguntar-lhe, quando é que isto acaba?
    --Porque tudo acaba!
    Quando é que me devolves a liberdade? Não lhe respondeu, porém, deixou os seus pensamentos continuarem a florescer e falou-lhe da ichó que o cabo armara:
    "--Sabes, minha linda, o Cabo vai usar-te, como furão, para ferrar o teu dono na lura. Vais ser tu, na tua inocência, que no-lo vais trazer às nossas mãos e, depois um interrogatória bem conduzido ao pecado e, da assunção do pecado à culpa é um saltinho. "
    Escutava-o condescendente, por se saber parte da conversa, respondendo-lhe com um olhar e, dois ou três acenos de rabo de quando em vez.
    Os pensamentos uma vez libertos ganham autonomia e, assim, continuaram discorrendo sobre as coisas da vida: "--Não era preciso tanto, andamos nisto desde o raiar. Quem foge não quer guerra! Se o caso fosse de vida ou de morte, ai sim ,tinha que se agir veloz e com autoridade. Mas se não tivesse que ser tanto melhor. Neste caso querer apanhar o pobre, à mão, na sua própria casa a todo custo era demais."
    Os anos de serviço, amoleceram-no, foram-lhe ensinando a relativizar a força da lei. A sua consciência reflexiva mostrou-lhe que nem sempre o que é legal é justo. E, nos muitos anos de serviço viu passar, pela penumbra sombras de poder, muitos empenhos de gente gorda. Casos houve em que constatou que a lei era frouxa para os possidentes e poderosa com os fracos! Por isso, fruto da sabedoria colhida da reflexão e da experiência de vida, maturada com o tempo, foi despontando na sua consciência uma moinha inconsolável que lhe rogava para usar a autoridade e a lei temperada com o coração.
    Mas, no caso, conformava-se, em parte, com o querer persistente do Cabo, havia que apresentar serviço. O maioral tinha açoitado a sua competência, picando os seus brios e os da corporação, com palavras azedas e cortantes, que lhe ficaram a morder o orgulho...
    O Cabo mais a Praça, ainda de sangue na guelra, chegaram e abeiraram-se do portal de duas folhas chapeado a zinco e ficaram parados de cabeça na ponta dos pés, procurando com os olhos rasantes movimentos na varanda ou no quinteiro e ruídos, com as orelhas, no interior da casa do Regedor. Nem sombra de gente foi vista, nem pio de ruído ouvido.
    A Praça meteu a mão à aldraba da porta, rodou, empurrou e abriu-a, chamou de pronto e não recebeu a resposta reclamada. Uma leve preocupação começou a tomar conta do ânimo do Cabo que contava com o regedor para elo da corrente do seu plano. A guarda sentia-se observada, mas ninguém se mostrava a perguntas.
    Conheciam-lhe os usos, de longos anos de relação, pareceu-lhes cedo para já ter saído para a missa. Inquietos atravessaram o quinteiro, com passos enérgicos enchumaçados, saíram pela estreita porta e atravessando a eira continuarem a procura na horta da cortinha...
    No bairro Novinho, sem saber o que se passava no bairro mais a cima, o caçador furtivo continuava macambuzio a dissecar preocupações e dúvidas na varanda. Deu mais dois ou três passos, sem querer acordar o tabuado e encostou-se. Escondeu um braço, até à axila através do postigo da porta da cozinha e tateou sem falhas, rodou o fecho taramela enquanto encostava o encontro. Sumiu-se. Ficou, no ar, um ranger gemido de porta e dobradiças.
    Entrou lastimoso de cabeça pendida. Um clarão de luz entrou à sua frente, cerrou a porta e pô-la fora, na varanda. Era luz em demasia para o seu estado d'alma.
    A mulher sobressaltou-se:
    Naquele dia ele não tinha tossicado aquela tosse pigarreada de quem se anuncia. Assoberbada nas tarefas de ecónomo, levantou os olhos, numa expressão a inflar o intercílio e percebeu que aí vinha desgraça. É sabido que as mulheres percebiam e percebem quase tudo e quando querem do que querem nada lhes escapa!
    As crianças, em repolho à volta das saias da mãe e da fogueira, fizeram silêncio e quedaram-se direitinhas, não se sabe se por medo se por respeito ou por ambos, mostrando um sentimento, ora de receio, ora de veneração: os tempos eram outros. Ficaram vozitas sufocadas em olhitos luminosos e orelhas atentas. Depois lá foram dando passinhos entrementes, até retomaram um tagarelar contido por perceberem que havia algo feio. Na inocência, de quem pouco entende, continuaram no seu mundo de crianças: a nossa eternidade terrena.
    (mo. continua)
    DSLC
    Cantroço: grande pedaço partido à bruta.
    Há bem há: há muito tempo
    Ichó: armadilha, tipo alçapão, para apanhar perdizes ou coelhos.
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