• Nós por Cá

    sábado, 31 de outubro de 2015

    A caçada, o sapo na fonte

    Os passos que los levam são os que nos trazem, passam porém sem deixar rasto como passos que foram, ficam, por vezes, pegadas que nos sustêm a caminhada da vida e nos prendem a um querer viver junto do que amamos.
    Os passos apressados de quem fugia, pelo espaço percorrido, deixaram de ser espicaçados pelo receio e foram perdendo nervoso, passaram vagarosamente a pensativos e arrastados, a querer ganhar fôlego, para vencer a inclinação que eleva o terraço do largo da Freiria acima do Rio.
    Vencido o lagoeiro sobre o caminho, saltado de pedra em pedra em carreirinha de malabarista em poldras, parou um olhar a olhar para trás. A preocupação e a passada arreceada fizeram-lhe nascer, por debaixo do chapéu, cantarinhas de suor que luziam num querer escorrer. Com gestos impensados, de tanto repetidos, uma mão tateou o bolso, outra manobrou o chapéu. E, no bolso nada era!
    A carência levou-o à entrada da mina que ficava no fundo da vereda, curvou-se, debruçou-se mais um pouco, acariciou com carinho a película da água da fonte a varrer ciscos, com a mão em movimentos de quem afia navalha de barbeiro em assentador couro, a ponta dos dedos, libelinhas que põem ovos sem molhar as asas, banharam-se de humidade orvalhada trazendo um dedal de água fresca doce e limpa.
    A mão, que é tudo e tudo faz, fez de lenço -- a pressa tinha ganho aos cuidados da mulher-- limpou as cantarinhas das fontes da cabeça, olhou o fundo da mina, --a escuridão que tudo encobre--, de onde persistentemente vinha correndo o precioso liquido por veias da terra ali golpeadas pelos antepassados que nos acompanham e questionam: aves que voaram sem marcar por onde passaram para permitir que nós façamos,--de olhos postos no fim--, do que foi o seu caminho, caminho nosso que também legaremos.
    As fontes eram santuários sociais, pontos de encontro onde a vida de todos ancorava e corria, pela voz do povo. Olhou o lugar com desvelo interior e viu, como quem sonha fora das tribulações que o apoquentavam, a escuridão, o para lá de, o invisível, que produz numa perpetuidade pensamentos inquietos no íntimo, na humanidade de cada ser, sempre na busca de sentidos últimos. Ressumarem-lhe lembranças, turbilhão de nuvens disformes sopradas por ventos endiabrados, que ora correm sem porquê, ora estancam sem tal quê: crianças felizes à solta num prado...
    Foram-se-lhe esparzindo memórias visuais repletas de um assinto mavioso:
    Veio-lhe à memória uma que de muito querer e, porque os pais não queriam, esfolhou um sapo que botou na boca da mina, só para ir buscar a água à fonte do seu amor, que ficava mais longe, mas para ela muito mais perto! Este romance de amor merecia ser escrito, ...
    Um dia, ao romper da alva, a água da mina estava muito turva que nem dava para encher o caneco. Esperou que assentasse. Demorou. Chegou. E, antes que afluísse remoque, disse:
    --A água hoje estava toda turva...
    --Turva de quê!
    --Sei lá eu!
    -- Turva andas tu com a cabeça no ar!?
    --O sem vergonha veio aí fandingar, estava com muitas saudades tuas que até veio encostado às paredes a coberto das sombra da manhã ainda a esfregar os olhos!? Foi?...Não tem vergonha nenhuma! ...Eu já te avisei olha que o que ele quer é embelicar: pôr o trocho no repolho da tua pachoucha, o cadeleiro!"

    "--Bô! Não sou oferecida! Aqui ninguém toca!... Só depois da Igreja!" Anunciou amurrilhada para um botão rosado, que tinha no peito, pensou no amado e sentiu um aperto que lhe fez brilhar um sorriso nos olhos. Cadeleiro o seu amor? Ele não era desses, já tinham feito, com poucas palavras, juras de amor eterno.
    A carga do amor, que derreia, tinha fosforeado incompreendida para quem só vê. Muito mais o primeiro e único amor que quando floresce ganha raízes profundas, fascinações da mocidade que só têm coração.
    No caso era tudo verdade: a água estava turva. As coisas nem sempre são o que parecem. Mas também andava com a cabeça no ar por culpa do amor. Não adianta negá-lo, a natureza faz de nós o que quer como quer e quando quer.
    "--Com tantos rapazes na aldeia foste logo empeçonhar-te por aquela prenda vesga!" Acrescentou com vontade de lhe dar um bufardo, mas a filha já não tinha idade para ensaiar, à muito que tinha deixado o frandil.
    O amor não vê defeito. Sentiu a injustiça e logo o muito querer polvilhou-lhe de ideias a mente, foi pensando em arteirice para quebrar o enguiço da fonte próxima: "A água hoje estava turva. E se ela um dia ficasse choca?". Ficou-se a magicar de forma silenciosa engenhosa e criativa o que faria assim foi ficando urdida a marosca no seu pensamento...
    Uns dias depois vieram uns borriços, ouviu as rãs ralar nas charcas e depreendeu que os sapos também apareceriam. Gostam muito de rapiocar de fato molhado os hortelões fanfarrões! Preparou-se e foi à procura, onde a experiência lhe dizia que veria, lá estava um enorme, de olhos esbugalhados, anafado e vagaroso como lhe convinha. Com um pau, que levava, tirou a vida ao aziago mártire, sem pinga de clemência, e escondeu-o debaixo de umas ervas na borda da eira à beira do carreio da fonte.
    Ao cair da noite, fez-se coanhedeira raspou-se pela eira pegou-lhe apressada e levou-o. Amoichada esfolou-o, com uma farrusca carcomida de gume finíssimo que nem navalha de barbeiro até ver o veneno espirrichar. Esventrou-o ainda, com ganas de rapariga do campo, e foi botá-lo, todo esfacelado, à fonte. Olhou-o a boiar que nem cortiça bem seca, como era seu intento, antes de lhe virar costas...  
    Passou a farrusca velha, de barbear o reco em dezembro, pela água e, em casa, pela fogueira da lareia. Depois guardou-a no buraco da parede, debaixo da varanda, de onde a tinha surripiado...
    Encontrava-se agora abandonado sobre a enxerga o seu corpo cansado. Mas a cabeça?
    "-- Raios pelem que não dormes!..."
    A ansiedade de olhos arregalados ainda lhe trouxe uma última pergunta:"-- porque será que os ciganos fogem dos sapos? Talvez crendices? Bruxaria? Deve ser!" Tentou responder o entendimento a passar-se para a dormência ... Mas deixou o mundo por horas...
    Já tinha clareado o albuge no além, porém enrodilhou-se um pouco mais à volta das panelas, a fazer que fazia, então, foi ao canto da varanda e pôs-se a esculcar pelas gelosias, como quem se confessa, para ver e ouvir sem ser vista .
    Até que se ouviu alanzoeira vinda dos lados da fonte.
    Lampeira pegou no caneco e abeirou-se, com a maior surpresa teatralizada do mundo. Mas que indignada ela estava!
    "-- Quem teria feito uma patifaria destas." Protestavam umas."-- Lindo serviço este!" Acrescentava ela sem lhe remorder na consciência a patranha.
    Perante o alarido remexido juncaram a esbracejar as mulheres e as moças à boca da fonte. Foram-se aproximando também um ou outro homem, vindos dos campos em redor, com menos falas, olhavam levantando a boina com dois dedos a coçar a cabeça com os restantes. Mas todas e todos retorquiam que faziam e aconteciam, se soubessem quem tinha sido o malandro com vontade de o esfrangalhar.
    "--Quem fez um trabalho destes merecia um tratamento igual ao que ele fez ao pobre do bicho." Ouvia-se de um lado."-- Era o que ele merecia!" Acrescentaram outras do outro, agora mais calmas com a raiva a esmilhar-se, enquanto acertavam os lenços da cabeça que descompuseram com o esbracejar...
    "--A culpa é sempre dos pardais e nunca das galinhas como bem sabem!" Disse a coligir as pontas soltas, cheio de pertinácia, o mais idoso de corpo caçapo. E acrescentou:"-- o mais importante não é saber o quem fez, mas o porquê?...
    "-- Se o porquê viesse, daí ao quem, era um saltinho!"
    Ninguém o ouviu, porque pensar cansa e praguejar liberta. Porém também é sabido que o pensamento em ação é lenhador que de machado na mão vai golpeando, o tronco prumo da alta árvore, sem poder jurar para que lado ela cairá, ainda que a palavra seja dada aos ramos mais compridos... O pensamento é mão cheia de grãos que liberta semeadura por entre os dedos.
    A moça perdida de amores já tinha o pensamento longe, estendia os seus braços porque ser feliz é ter quem abraçar, enquanto muquia uma reza pedindo ao altíssimo para que a fonte secasse naquele verão. Pois, a infelicidade, o inferno terreno, é ter braços e não ter quem abraçar!
    Ouviu-se o veredito do ajuntamento prestes a esfarelar-se para voltar à faina: a água estava empeçonhada, a fonte embargada, nem para os animais servia!
    Os homens foram buscar uns gastalhos e umas silvas, boiçadas na barreira, e taparam-lhe a boca. A notícia correu, de boca em boca, num instantinho, pelo bairro todo de cabo a rabo...

    (mo. continua)

    DSLC
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