Os passos que los levam são os que
nos trazem, passam porém sem deixar rasto como passos que foram, ficam, por
vezes, pegadas que nos sustêm a caminhada da vida e nos prendem a um querer
viver junto do que amamos.
Os passos apressados de quem
fugia, pelo espaço percorrido, deixaram de ser espicaçados pelo receio e foram
perdendo nervoso, passaram vagarosamente a pensativos e arrastados, a querer
ganhar fôlego, para vencer a inclinação que eleva o terraço do largo da Freiria
acima do Rio.
Vencido o lagoeiro sobre o
caminho, saltado de pedra em pedra em carreirinha de malabarista em poldras, parou
um olhar a olhar para trás. A preocupação e a passada arreceada fizeram-lhe
nascer, por debaixo do chapéu, cantarinhas de suor que luziam num querer escorrer.
Com gestos impensados, de tanto repetidos, uma mão tateou o bolso, outra
manobrou o chapéu. E, no bolso nada era!
A carência levou-o à entrada da
mina que ficava no fundo da vereda, curvou-se, debruçou-se mais um pouco, acariciou
com carinho a película da água da fonte a varrer ciscos, com a mão em movimentos
de quem afia navalha de barbeiro em assentador couro, a ponta dos dedos,
libelinhas que põem ovos sem molhar as asas, banharam-se de humidade orvalhada
trazendo um dedal de água fresca doce e limpa.
A mão, que é tudo e tudo faz, fez
de lenço -- a pressa tinha ganho aos cuidados da mulher-- limpou as cantarinhas
das fontes da cabeça, olhou o fundo da mina, --a escuridão que tudo encobre--, de
onde persistentemente vinha correndo o precioso liquido por veias da terra ali
golpeadas pelos antepassados que nos acompanham e questionam: aves que voaram
sem marcar por onde passaram para permitir que nós façamos,--de olhos postos no
fim--, do que foi o seu caminho, caminho nosso que também legaremos.
As fontes eram santuários
sociais, pontos de encontro onde a vida de todos ancorava e corria, pela voz do
povo. Olhou o lugar com desvelo interior e viu, como quem sonha fora das
tribulações que o apoquentavam, a escuridão, o para lá de, o invisível, que produz
numa perpetuidade pensamentos inquietos no íntimo, na humanidade de cada ser,
sempre na busca de sentidos últimos. Ressumarem-lhe lembranças, turbilhão de
nuvens disformes sopradas por ventos endiabrados, que ora correm sem porquê,
ora estancam sem tal quê: crianças felizes à solta num prado...
Foram-se-lhe esparzindo memórias
visuais repletas de um assinto mavioso:
Veio-lhe à memória uma que de
muito querer e, porque os pais não queriam, esfolhou um sapo que botou na boca
da mina, só para ir buscar a água à fonte do seu amor, que ficava mais longe,
mas para ela muito mais perto! Este romance de amor merecia ser escrito, ...
Um dia, ao romper da alva, a água
da mina estava muito turva que nem dava para encher o caneco. Esperou que
assentasse. Demorou. Chegou. E, antes que afluísse remoque, disse:
--A água hoje estava toda
turva...
--Turva de quê!
--Sei lá eu!
-- Turva andas tu com a cabeça no
ar!?
--O sem vergonha veio aí
fandingar, estava com muitas saudades tuas que até veio encostado às paredes a
coberto das sombra da manhã ainda a esfregar os olhos!? Foi?...Não tem vergonha
nenhuma! ...Eu já te avisei olha que o que ele quer é embelicar: pôr o trocho
no repolho da tua pachoucha, o cadeleiro!"
"--Bô! Não sou oferecida!
Aqui ninguém toca!... Só depois da Igreja!" Anunciou amurrilhada para um
botão rosado, que tinha no peito, pensou no amado e sentiu um aperto que lhe
fez brilhar um sorriso nos olhos. Cadeleiro o seu amor? Ele não era desses, já
tinham feito, com poucas palavras, juras de amor eterno.
A carga do amor, que derreia, tinha
fosforeado incompreendida para quem só vê. Muito mais o primeiro e único amor
que quando floresce ganha raízes profundas, fascinações da mocidade que só têm
coração.
No caso era tudo verdade: a água
estava turva. As coisas nem sempre são o que parecem. Mas também andava com a
cabeça no ar por culpa do amor. Não adianta negá-lo, a natureza faz de nós o
que quer como quer e quando quer.
"--Com tantos rapazes na
aldeia foste logo empeçonhar-te por aquela prenda vesga!" Acrescentou com
vontade de lhe dar um bufardo, mas a filha já não tinha idade para ensaiar, à
muito que tinha deixado o frandil.
O amor não vê defeito. Sentiu a
injustiça e logo o muito querer polvilhou-lhe de ideias a mente, foi pensando em
arteirice para quebrar o enguiço da fonte próxima: "A água hoje estava
turva. E se ela um dia ficasse choca?". Ficou-se a magicar de forma
silenciosa engenhosa e criativa o que faria assim foi ficando urdida a marosca no
seu pensamento...
Uns dias depois vieram uns borriços,
ouviu as rãs ralar nas charcas e depreendeu que os sapos também apareceriam. Gostam
muito de rapiocar de fato molhado os hortelões fanfarrões! Preparou-se e foi à
procura, onde a experiência lhe dizia que veria, lá estava um enorme, de olhos
esbugalhados, anafado e vagaroso como lhe convinha. Com um pau, que levava, tirou
a vida ao aziago mártire, sem pinga de clemência, e escondeu-o debaixo de umas
ervas na borda da eira à beira do carreio da fonte.
Ao cair da noite, fez-se
coanhedeira raspou-se pela eira pegou-lhe apressada e levou-o. Amoichada esfolou-o,
com uma farrusca carcomida de gume finíssimo que nem navalha de barbeiro até
ver o veneno espirrichar. Esventrou-o ainda, com ganas de rapariga do campo, e
foi botá-lo, todo esfacelado, à fonte. Olhou-o a boiar que nem cortiça bem seca,
como era seu intento, antes de lhe virar costas...
Passou a farrusca velha, de
barbear o reco em dezembro, pela água e, em casa, pela fogueira da lareia. Depois
guardou-a no buraco da parede, debaixo da varanda, de onde a tinha surripiado...
Encontrava-se agora abandonado
sobre a enxerga o seu corpo cansado. Mas a cabeça?
"-- Raios pelem que não
dormes!..."
A ansiedade de olhos arregalados ainda
lhe trouxe uma última pergunta:"-- porque será que os ciganos fogem dos
sapos? Talvez crendices? Bruxaria? Deve ser!" Tentou responder o
entendimento a passar-se para a dormência ... Mas deixou o mundo por horas...
Já tinha clareado o albuge no
além, porém enrodilhou-se um pouco mais à volta das panelas, a fazer que fazia,
então, foi ao canto da varanda e pôs-se a esculcar pelas gelosias, como quem se
confessa, para ver e ouvir sem ser vista .
Até que se ouviu alanzoeira vinda
dos lados da fonte.
Lampeira pegou no caneco e
abeirou-se, com a maior surpresa teatralizada do mundo. Mas que indignada ela
estava!
"-- Quem teria feito uma patifaria
destas." Protestavam umas."-- Lindo serviço este!" Acrescentava
ela sem lhe remorder na consciência a patranha.
Perante o alarido remexido juncaram
a esbracejar as mulheres e as moças à boca da fonte. Foram-se aproximando também
um ou outro homem, vindos dos campos em redor, com menos falas, olhavam levantando
a boina com dois dedos a coçar a cabeça com os restantes. Mas todas e todos
retorquiam que faziam e aconteciam, se soubessem quem tinha sido o malandro com
vontade de o esfrangalhar.
"--Quem fez um trabalho
destes merecia um tratamento igual ao que ele fez ao pobre do bicho." Ouvia-se
de um lado."-- Era o que ele merecia!" Acrescentaram outras do outro,
agora mais calmas com a raiva a esmilhar-se, enquanto acertavam os lenços da
cabeça que descompuseram com o esbracejar...
"--A culpa é sempre dos
pardais e nunca das galinhas como bem sabem!" Disse a coligir as pontas
soltas, cheio de pertinácia, o mais idoso de corpo caçapo. E
acrescentou:"-- o mais importante não é saber o quem fez, mas o porquê?...
"-- Se o porquê viesse, daí
ao quem, era um saltinho!"
Ninguém o ouviu, porque pensar
cansa e praguejar liberta. Porém também é sabido que o pensamento em ação é
lenhador que de machado na mão vai golpeando, o tronco prumo da alta árvore,
sem poder jurar para que lado ela cairá, ainda que a palavra seja dada aos
ramos mais compridos... O pensamento é mão cheia de grãos que liberta semeadura
por entre os dedos.
A moça perdida de amores já tinha
o pensamento longe, estendia os seus braços porque ser feliz é ter quem abraçar,
enquanto muquia uma reza pedindo ao altíssimo para que a fonte secasse naquele verão.
Pois, a infelicidade, o inferno terreno, é ter braços e não ter quem abraçar!
Ouviu-se o veredito do
ajuntamento prestes a esfarelar-se para voltar à faina: a água estava empeçonhada,
a fonte embargada, nem para os animais servia!
Os homens foram buscar uns
gastalhos e umas silvas, boiçadas na barreira, e taparam-lhe a boca. A notícia
correu, de boca em boca, num instantinho, pelo bairro todo de cabo a rabo...
(mo. continua)
DSLC
0 comentários:
Enviar um comentário