Preocupado e alerta, tocado pela história,
sentia o amor. A vida lhe ensinara que o amor sulca corações, ou sabe se lá o
quê: um não-sei-quê, com a força de todas as certezas, mas sempre se esquiva a julgamentos.
Um Dom supremo que por vezes parece maldição ou feitiço e, aqui, sacrificou uma
vida; a do inocente sapo…
O amor, a crueldade e a paixão
andam juntos!? Ou, então parece: O amor sem uma pitada de crueldade é impotente,
a crueldade sem o amor é loucura cega e, no derradeiro, ainda fazem com que a
paixão não seja efémera. Ah!... Há sofredores! Há sentimentos humanos, teia de
paradoxos e absurdos que nos são impressos, desde tenra idade, num coração que
nos guia e tudo sofre, porque só assim sabe amar. Então a vida: a espaços um
remoinho tumultuoso, perturbadíssimo de afetos e paixões, onde grita furiosa ou
chora condoída a dor que cada um sente ou vai sentindo… porque o desamor… ah!
esse, nem me falem! É um estupor!... O desamor: a dor do bem perdido ou quase
não tido. Como se ampara? Adiar! Adiar a esperança? Como, se o que não se
alcança é mágoa que magoa. Porém, quem amarra o ímpeto da paixão, quando o mais
belo do mundo é um casal de namorados que se entrega com a vontade toda do
mundo todo, como se não houvesse mais mundo!...
Mas, meus queridos corações
bondosos, --porque só estes se apaixonam, sofrem, amam e, por isso vivem--, a narrativa
continua:
Atou as reflexões com o vencelho
do temor, ripou da barreira um fiunco para esgarabelhar os dentes e entreter os
pensamentos, antes de voltar a olhar para onde supunha o perigo. Levantou-o:
o Rio tocava-o, com a ponta de um dedo de uma mão estendida, por isso passou
por cima dos telhados, carregou à direita e disparou-o investigador sobre o bairro
do Novainho, depois foi subindo, cautelosamente a inventariar sombras. Carregando
à sua direita arreou-o, algum tempo sobre o Banho, enquanto riscava no ar uma
tangente sobre a cruz granítica do santo Antão, que como cruz não tem frente ou
costas.
A guarda se descesse seria por
ali, de olhos fixos varreu a encosta com acenos de cabeça de leitor, ora para um
lado ora para o outro, entre os dois bairros sobre o Tropelar estremeceu: surgiu
nas suas costas uma sombra esfalfada pela vida.
"-- Assustaste-te! Não me precatabas. Pela aragem a matutar em
cuidados?
-- Não estava a contar e a tua
sombra também não correu.
-- Pois não, o Sol já vai alto e
alto faz a sombra piquena.
Era uma sombra amiga que nada escondia,
tinha descido pelo atalho de pé posto ou caminho de rês, junto à casa do
Mineiro.
--Estava a pensar de quando a…,
rapariga quase do nosso tempo, ... deitou o sapo à fonte. Sorriram da juventude.
-- Mais velha, mais velha, já era
mulher quando eu… Essa ficou para contar aos netos, mas olha que a maroteira que
se descobriu por causa dessa não lhe fica atrás! E, foi feita por um farsola do
Rio que era danado para a maroteira e quando se juntava com o irmão. Ui que
larau aquele! Que parelha aquela, só lhes dava para a inzonice.
--Já nem me alembraba dessa? Quase
mentiu porque a sua história era outra.
-- Então por causa do sapo a mina
tinha que ser despejada. Um sapo, tem um beneno medonho e é bicho que mete
nojo! e isso levava tempo... sentenciou a sombra falante.
-- Então.
--Então eu não estou a contar!? Umas
semanas antes o Mineiro tinha andado à procura da sua cana...,
Sabem os leitores o que é uma
cana? E, como era esta? Claro que sabem. Mas eu lhes digo: era um casqueiro, inconsútil,
melhor dizendo inteiriço, de castanho no fundo, com coisa de quatro a seis
braçadas de comprido, onde a enxó e o formão em dias de invernia tinham mordido
e roído polpa a fazer caleira. Dos lados umas folhas de forro velhas e leves, com
altura de uma mão-travessa, pregadinhas com mil cuidados, sobre elas,
ligando-as, três travessas de ripas, uma em cada ponta e uma no meio. Com a
armação construída as frinchas eram bem calafetadas com resina de pinheiro ou
cola de cerejeira, vedantes ao alcance das nossas gentes, que resistiam à água
fugidia que sempre se queria escapar.
Esta cana, atravessava o vão da
pequena ribeira, do Rio para da Freiria, encostada à parte de cima do carreiro,
de maio a setembro, ou por aí, porque era desse lado que corria o rego, que
nascia na quinta do morgado onde ia beber. Ai estava ela, no ar sem se meter
com ninguém, segura por terrões nas pontas, para levar a água ao outro lado,
onde ele tinha um acrescento de courela.
Uma madrugada pegou no sacho,
tornou a água no rego veio para baixo atrás dela que corria à sua frente veloz
ouviu-a e viu-a a saltar para o ribeiro, voltou acima apressado, encaminhou a
água para proveito. Desceu de novo e ficou a pensar o impossível. A cana tinha
desaparecido!
-- Correu seca e meca e nada,
depois dizia num desalento abespinhado: "Algum malandro que gostava de
fazer maroteiras. Para que se metem com o que esta quedo!? Mas aquilo até seria
obra de mais que um!"
-- Era um bom homem muito metido
em si, trabalhador e poupado, não merecia a desfeita. Acrescentou o fugitivo de
pouca culpa.
-- Ele contou, a quem quis ouvir,
que procurou por todo o lado, junto deste e daquele, no Rio e nas franjas da
Freiria, procurou a quem passava e pelos campos fora. Vasculhou no meio dos
milhos, das botelhas, dos painços e até no linho, foi ainda pelos becos e
silvados e nada! Seria alguém que estaria muito necessitado de lenha? Desistiu
da procura. Ainda o ouvi dizer, a meu
pai, que no inverno, com tempo, faria outra, porque nunca se pode desistir da
vida… disse a sombra masculina pensativa a olhar o sol no corpo de duas
mulheres que passavam apressadas, acompanhadas por moço de rosto ainda glabro.
--- Mas a fonte tinha que ser
limpa ou não tinha!?
--Pois tinha, teve, mas os homens,
que eram quem fazia esses trabalhos, já tinham os trabalhos planeados, porque
bem sabes que há tempos, pelo ano fora, em que os campos chamam de ferroada. Então
acordaram que no domingo, no largo, se entenderiam… Porque se a mina tinha que
ser despejada aproveitava-se também para lhe raspar as lamas...um sapo,
"tem um beneno medonho e é bicho que mete nojo!" e isso levava
tempo... As patroas queriam aquilo feito de afogadilho, as solteiras pouco se
importavam se fossem mais longe mais se peneiravam, mas as mães é que não
gostavam nada, não as tinham debaixo de olho e, numa casa havia sempre coisas para fazer. O
tempo foi passando e as patroas já andavam a servir o caldo sem finezas e a querer
espinotear. Até se ouviu dizer que, como os homens saltaram um domingo, as
mulheres já segredavam, umas com as outras, que se eles continuassem a enmorrinhar,
se calhar, teriam que lhes cruzar as pernas a fazer a cruz do padroeiro para
eles não saltarem mais!
--Entendo, entendo, se Santo
André!
-- Isso é que não! Quando um home
é nobo era uma porra f*d*da!... Mas os homens sempre vão cumprindo e no segundo
domingo depois da missa, no largo, combinaram os trabalhos para o dia seguinte.
Cada casa tinha que mandar um homem ou moço espigado, se houvesse, aquilo era
coisa para uma manhã. Todos levariam ferramentas e um punha a junta ao carro de
ladranhos postos, porque as lamas delgadas e lamacentas tudo enlodavam não
podiam ficar ali, naquele pisar, a emporcalhar tudo… as lamas eram um mimo nas hortas que também não
tinham nojo do sapo hortelão, até agradeciam que este lhe catasse o pulgão e as
lagartas comilonas que têm uma bocarra maior que o corpo. Se caiem num repolho,
rapaz! Escuta!
--Estou a ver, estou a ver, ainda
seca primeiro o nascente que tu acabas a história!
-- Bem, a coisa tem que ser bem-feita,
ou não? O da junta era o ...não interessa… antes de se despedirem disse: -- porque
há sempre alguém que tem que dizer-- rapazes amanhã matamos o bicho ao clarear
e juntamo-nos aqui e ala à função. Temos de levar uma candeia de azeite, por
causa do cheiro do petróleo. No fundo da mina não se deve ver bem muito menos de
manhã a luz é pouca! Depois lembrou-se que era ele que tratava disso porque
tinha em casa uma boa.
A sombra falando, parando a cada
passada. Parou ao dobrar a ombreira da porta da casa do Baristo.
--Então vamos!? Puxava o fugitivo
sem culpa.
-- Cá vamos Lesma. A paciência é
uma calma nobre. Todos buscamos o descanso nem que seja lá para diante, mas,
por isto ou por aquilo, nunca ninguém o alcançou.
-- Falas bem a vida são
preocupações, esperas e tardanças, trabalhos até dobrados que nos vão derreando
e gastando.
-- O aguilhão da necessidade
espeta sempre fundo e ordena-nos: toca a andar! Temos garantido, se não nos
levarem antes, o descanso que vem da falta de forças, o outro, com dinheiro ou
sem ele, ainda ninguém o apanhou… De pensamento dolente, sem andar um palmo,
caminhou com a narrativa.
“Chegados, o da junta, senhor de maior
respeito, tomou na mão a direção da força dos trabalhos. Então será assim: os
mais novos que tem o sangue a ferver vão para dentro da mina, de calças bem arregaçadas,
com enxadas e pás, para rapar e por as lamas cá fora. O mais gasto toma conta
da junta, os outros vão carregando. Deve ter pouca coisa… Que vos parece?” E continuou.
“Não podeis entrar com os pés quentes, por cauda do reumático, deixai-os arrefecer.
Acrescentou enquanto abria o boqueiro, a
querer fugir. Afastou-se num saltinho.”
A água explodiu em cachão pela focinheira,
nisto ouviram uma pancada seguida de um barulho grave e oco que entoou mina
dentro. Disse o mais idoso escorado nas sequelas e na experiência de quem já
muito tinha ouvido, embora se dissesse meio mouco:
“Ó dienho! Pareceu-me barrulho de
pau grande a bater na cápea do boqueiro.”
A junta era velha, mansa e
sabedora ficou imóvel a ruminar e ele foi também ver com os demais.
“Caraito! Olha aqui a cana do
Mineiro!” Exclamaram em golfada de olhares de espanto, ninguém conseguiu segurar
a curiosidade naquela roda.
“Há quanto tempo estará aqui?
Alguém perguntou. Todos iam para mandar palpites.
Interrompeu-os a todos com um
pigarrear, trémulo e enjangado, e sentenciou o mais idoso.
“A essa até eu respondo de olhos
fechados… Está cá desde que a cá botaram!” Riram-se todos do dito e, mais ainda
do como foi dito. São pessoas assim que alegram as tristezas do mundo e sempre trazem
incompletude à expressividade da escrita.
“Desde sempre.” E continuou num
vagar sem pressas. “Isto foi trabalho de mochos, durante o dia não se atreveriam.
Aquilo botaram-na cá com jeitinho a deslizar sobre a laje do boqueiro, depois empurraram-na
pondo-lhe as mãos no rabo e lá foi ela como um barco pequeno, a cortar a água. Deveria
parecer uma grande leirõa de cabeça de fora a mudar de margem enquanto
escorregava para o fundo da mina. Depois como tem uma boca em cada lado, a água
foi entrando levando-a, para o fundo, onde caturrou e foi ficando adormecida no
pequeno pego do remoinho da fraca nascente até nos vir falar, e tudo por causa
de um namoro!
Olhai para o que eu digo, mesmo
que olhassem com atenção no escuro ela nunca foi sombra nem vulto e, assim ficou
queda a empertigar este tempo todo. Quer-se dizer: como só tiravam canecos, ou cântaras
de meninas, de água pouco a pouco, um agora outro depois, nunca foi puxada. Por
isso está cá desde que a cá botaram! de certeza que na sua preocupação veio
aqui procurar, mas só espreitou de cabeça esticada não se botou à água. Encontrou-a
molhada!”
Fechou-se num silêncio e tossicou,
esperando o nada ou o tudo, porque a idade fala muda: quem a tem já aprendeu
que a razão tem manias e, ora cega, ora alumia.
O da junta acrescentou o que
todos pensaram, numa obediência e anuência muda:
“Faz sentido… Não vale de nada
chamá-lo. O tempo já amenizou a dor da perda, os problemas de um homem são sempre
muitos para uma cabeça só.
“só os problemas do coração é que
não vão.” Suspirou o mais idoso. Fitaram-se pensativos.
O da junta pegou na palavra
suspensa: “Vamos puxa-la. Usamos a junta mais as cordas com um nó de pedreiro, para
não nos engaldraparmos todos, e pescamo-la aqui para largo. Agora escorrega como
uma enguia e pesa que nem chumbo morto, está bêbada de todo, depois de escorrer
já pesa menos. No final botamo-nos a ela e levamo-la, por todos até lha
colocamos no lugar, ele depois afina-a, adiante.”
“O que o homem correu, que canseira e nada! É
por debaixo do nariz que os olhos nos são mais falsos!” Disseram, menos o da
junta e o mais idoso que agora meditava silêncios sem pressas para saborear a
vida...
Vivemos intensamente alguns
momentos, por nos sabermos sabedores de que não há como repor o que o tempo já
nos tirou e, nos vai tirando. A cana onde a vida corre--começa por um aí dorido
e acaba num derradeiro traque-- todos somos o nosso passado.
Passam os passos, só perdura a memoria
que traz movimento ao tempo, criando o antes e o hoje, e, a essência que vai
ficando em amanhãs: a árvore, de vida longa, que se plantou; a descendência que
se gerou e botou ao mundo, mais o que se semeou no coração de outros....
(mo. Continua)
DSLC
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