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    sexta-feira, 29 de abril de 2016

    A Caçada, o embate entre a patroa, no dizer dos homens, e a autoridade, março/abril 2016



    O caçador furtivo, leveza de fraca figura e rija têmpera, enfrentou a primeira escada da escadaria da Igreja que vê o sol poente. Pensativo agia por impulso, uma perna a querer subir e outra a querer ficar. A vontade quedou-as por momentos.
    Quando a cabeça está longe do corpo as pernas sempre fazem tesouras a medir a caminhada, cortando raios de luz se o sol brilha.
    Em agonia correu com a imaginação truculenta, lesta que nem lebre em caminho plano a mudar de rodeira, num ziguezague amedrontado pelo chumbo que zune. Voltou-se, carregado com aquela preocupação sobre os ombros que picava como um raio. “—Raios pelem a Guarda que nem guarda o dia santo!” Vociferou. Daria tudo para ver, sem ser visto, como a mulher se desenvencilhava.
    Tinha a mulher como esperta, desembaraçada e aparelhada de astúcia feminina capaz de ensarilhar o Cabo. Era uma meiguice, uma Santa, mas das avessas era um diabo…
    A mulher do caçador ansiosa observava-os, de cima, pela fresta da pequena janela de castanho, com a vontade toda de lhes mostrar os dentes. A vida, no lugar, era austera reclamava uma mulher prática.
    Era uma Mãe madura, que já tinha três frutos entre cravos e rosas. E, uma mulher que, naqueles tempos, já tivesse parido três vezes, tinha domado o pulso a tudo que era sofrimento e dor: também à do amor maternal, o milagre da vida; a tudo que era pena e tormenta e, se acossada, era capaz de se atirar para ações desassisadas sem receio dos danos…
    As crianças em silêncio, observavam a mãe e, nas suas maneiras pressentiam o perigo. Inquietas temiam-no, não o entendiam porque nunca o tinham sentido no corpo nem no entendimento, para o poderem compreender.
    Apavorados escondiam-se longe de portas e janelas. Os seus pequenos corações batiam atrapalhados, recolhiam o sangue apressados, vindo a palidez àquelas caritas malandras, agora tristes e assustadas, de olhos piscos...
    A mulher resolveu esperar fingindo afazeres para que o Cabo não lhe amarrasse a atenção por inteiro. Preparou-se: arredou num repelão, com mãos lestas, a grande panela de ferro puída pelo tempo, da fogueira que crepitava, com a mão a ir como lança e o corpo a fugir, das chamas. Os dedos sentiram a dor que queimava. Largou-a ao largo sobre a grande pedra da lareira e soprou, como quem beija, os dedos queixosos.
    Agora interpôs a ponta do avental e pegou na velha panela pela asa de mão firme e levou-a dependurada até ao remendo de lajedo, da ponta da varanda, colocado ali porque na invernia o vento sempre borrifava o madeiramento perecível. Na outra mão o balde de latão, a equilibrar a carga, com uma amostra de farelos de centeio e restos de água fria no fundo.
    Esperou o que viria.
    A leitoa já tinha sido desaugada àquelas horas do dia, mas como era um bom garfo nunca dizia que não a mais um pouco. Medrava a olhos vistos! Até luzia aquele lombo bonito, o crescimento arreganhava em pele avermelhada por entre os pêlos russinhos de uma alvura de linho.
    Na pontinha do beiral do telhado, de telha de caleiro ressequida e carcomida, estava imóvel a gata da casa: rodilha ao sol, de olhos semicerrados fingindo que dormia.
    O Cabo dobrou a esquina abeirou-se e da rua, sem perder a pose, lançou a saudação:
    --Bom dia, minha senhora!
    --Bom dia senhor Cabo! Por acaso até estava a ser e, … espero que assim continue.
    Naquela forte tensão as palavras foram saindo temerosas como passinhos de criança, enquanto, latejavam as veias, onde corria o sangue, a rebentar.
     -- Ter a guarda à porta de casa não pode ser coisa boa.
    -- Engana-se. A guarda só combate o mal! O esposo está? Encontramos uma coisa que lhe pertence e como compreende quem acha o perdido tem a obrigação de o restituir a seu dono.
    -- E que foi que meu marido perdeu?
    Por momentos pensou que traziam nas mãos a espingarda e preparou-se, por instinto, a dizer que esta não lhe pertencia. Arma era coisa de casa rica e, por isso, era coisa que ali não havia.
    --Em breve saberá. Mas ele está ou não? Chame-o aí! Disse em tom instigante.
     -- Deixe-se o senhor Cabo de rapapés! Se é dele também é meu. Venha de lá o que for que eu direi se nos pertence.
    As palavras foram-se tornando destemidas a sair da boca. A ousadia e fereza maternal da mulher do campo dona da casa, a quem os homens chamavam de patroa, começava-se a ouvir nas palavras e a ver nas maneiras.
    --O que trazemos é coisa boa e queremos que seja ele a recebê-la.
    Sem dilações, porque a manhã já ia alta, queria o cabo responder com cautelas matreiras. A manha do cabo, instruída na formação, tinha sido aprimorada por muitos anos de serviço e, também, pelos casos que já lhe tinham passado pelas mãos. Usava uma astúcia melosa que vinha, ainda, urdida por dedadas de fingimento.
    Enquanto isso o guarda a dois passos, tapado pela parede que lhe fazia sombra, estava atento à ordem que viesse, mantendo a Finura da Magreza na ponta do fiador trela.
    A criatura postada tudo ouvia, parecia porcelana angélica sentada em jardim e, assim assistia de olhar inocente sem perceber, ainda muito bem, o que estava ali a fazer. Temia este guarda era temperamental, abrutalhado e de maus fígados, e, tinha a biqueira da bota sempre à mão.
    O outro guarda, que o seu focinho via do lado contrário da casa, hoplita de atalaia, era dócil e sábio. Pensou nele com saudade lembrando-se que enquanto estiveram juntos ele, do nada, arrancava conversas profundas e libertava pensamentos sem tamanho:
    “— Vês lá no alto o sol que brilha intensamente e tudo alumia na sua grandeza maior. É o astro rei, mas sabes, só alumia meio mundo de cada vez, porém a luz da bondade humana alumia o mundo todo, a todo o tempo, seja de noite ou de dia. A Bondade é o sol maior da humanidade!” Rematava e de seguida remetia-se a um silêncio profundo e esmorecido a pensar coisas e loisas Não havia crueldade nem ódio naquele coração…
    O cabo continuou a argumentar construindo frases curtas com palavras certeiras e cautelosas que tirava do saco da astúcia para farpear num jogo racional.
    --A guarda peleja pelo bem, minha senhora! Posso afastar a porta? Acrescentou.
    -- Se peleja muito mais aleija! Ripostou.
    Não lhe respondeu ainda, e, também não lhe ocorreu, no instante, arrumar outras palavras pois, não queria ensarilhar-se em tropeções que o Cabo aproveitaria.
    Respondia da varanda escorada na experiência da vida entranhada na alma e no corpo. Era uma mulher pequena de ancas reboludas, --sensualidade aplainada pelas vestes--, num corpo de pouco unto, servida de peito mediano, vivendo e labutando em afazeres sem fim. A casa nunca dava descanso estava sempre cheia de obrigações e de bocas a quem matar a fome.
    O cabo fez-se desentendido encostou-se e entreabriu a porta do quinteiro, feita de intervalos, tábuas e ripas enrugadas.
    -- Deixe-se de coisas e chame lá o seu marido, que temos aqui a companheira dele para lhe devolver!
    Recebeu a paulada! E, pensou: “Malandros! Sempre é a espingarda, aquilo deixou-a para trás na corrida ou, foi escondê-la e eles viram-no.” Relembrou-se, estribou-se e apressou-se a dizer o que ele lhe tinha dito que dissesse e nada mais.
    -- O meu homem foi à missa senhor!
    -- Com que então foi à missa! Já nos podia ter dito.
    Para disfarçar o nervoso, que começava a conquistar terreno por dentro, engoliu em seco inventou tarefas que tinham sido pensadas antes da guarda chegar. Tirou o testo à grande panela de ferro, de três pés, e colocou-o com a asita para baixo e o côncavo húmido para cima para não apanhar a sujidade que se colava à humidade.
    De imediato explodiu uma baforada de vapor. Fogueou no ar uma lufada, um sopro de nuvem a quem a natureza deu as alturas como trono. Guinou o pescoço e arredou a cabeça do calor que se libertava apressado da boca escancarada da panela.
    Odores de nabo e de batatas miudinhas, tudo cozido e recozido, entraram-lhe pelo nariz. Os vapores humedeceram-lhe o rosto a querer formar gotículas nas pontinhas teimosas e curiosas de cabelos que se tinham escapado do poupo, e do afago do lenço, para ver quem estava.
    Com uma mão na asa e outra no pé vazou, num gesto mecanizado e rápido, parte daquele entulho esverdeado no balde. A leitoa recebeu os odores --com o sentido que vê o que os olhos não veem—levantou-se no cortelho soltando um curto e tremulo grunhido. A mulher, sem tirar os olhos do que fazia repetiu:
    -- Já lhes disse que foi à missa!
    --já vamos ver! Trá-la prá qui!
    A patroa a tressuar arreceou-se ao ouvir: “Trá-la prá qui!”. Rodou a cabeça atordoada com o olhar turvo de quem não quer ver. E, do nada, começou a desenhar-se, rente à parede e à porta, uma sombra que crescia disforme: primeiro nasceu o corpo mociço e aprumando do guarda e depois apareceu a Finura da Magreza de cabeça baixa onde dois olhitos medrosos pontilhavam.
    Percebeu logo! Riu-se como nunca! Gargalhas e gargalhas invisíveis.  
    Sabia coisa, sobre a Finura da Magreza, que o cabo nem supunha!

    Que alívio! Poisou o balde, descarregou a tensão do medo e do receio. Ganhou um novo rosto. “--Com que então é a cadelita!”.
    Refugiou-se no silêncio, escondendo o pensamento, as ideias e as motivações. Pensou e riu-se, de novo, muito naquele silêncio irónico de gozação.
    --Pode abrir… pode abrir, desde que não ponha um pé dentro, que aqui em casa não entram calças sem o meu homem estar presente!
    (mo. Continua)

    DSLC
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