O caçador furtivo, leveza de
fraca figura e rija têmpera, enfrentou a primeira escada da escadaria da Igreja
que vê o sol poente. Pensativo agia por impulso, uma perna a querer subir e
outra a querer ficar. A vontade quedou-as por momentos.
Quando a cabeça está longe do
corpo as pernas sempre fazem tesouras a medir a caminhada, cortando raios de
luz se o sol brilha.
Em agonia correu com a imaginação
truculenta, lesta que nem lebre em caminho plano a mudar de rodeira, num ziguezague
amedrontado pelo chumbo que zune. Voltou-se, carregado com aquela preocupação
sobre os ombros que picava como um raio. “—Raios pelem a Guarda que nem guarda
o dia santo!” Vociferou. Daria tudo para ver, sem ser visto, como a mulher se
desenvencilhava.
Tinha a mulher como esperta, desembaraçada
e aparelhada de astúcia feminina capaz de ensarilhar o Cabo. Era uma meiguice,
uma Santa, mas das avessas era um diabo…
A mulher do caçador ansiosa observava-os,
de cima, pela fresta da pequena janela de castanho, com a vontade toda de lhes
mostrar os dentes. A vida, no lugar, era austera reclamava uma mulher prática.
Era uma Mãe madura, que já tinha
três frutos entre cravos e rosas. E, uma mulher que, naqueles tempos, já
tivesse parido três vezes, tinha domado o pulso a tudo que era sofrimento e
dor: também à do amor maternal, o milagre da vida; a tudo que era pena e
tormenta e, se acossada, era capaz de se atirar para ações desassisadas sem receio
dos danos…
As crianças em silêncio,
observavam a mãe e, nas suas maneiras pressentiam o perigo. Inquietas temiam-no,
não o entendiam porque nunca o tinham sentido no corpo nem no entendimento,
para o poderem compreender.
Apavorados escondiam-se longe de
portas e janelas. Os seus pequenos corações batiam atrapalhados, recolhiam o
sangue apressados, vindo a palidez àquelas caritas malandras, agora tristes e
assustadas, de olhos piscos...
A mulher resolveu esperar fingindo
afazeres para que o Cabo não lhe amarrasse a atenção por inteiro. Preparou-se:
arredou num repelão, com mãos lestas, a grande panela de ferro puída pelo tempo,
da fogueira que crepitava, com a mão a ir como lança e o corpo a fugir, das
chamas. Os dedos sentiram a dor que queimava. Largou-a ao largo sobre a grande pedra
da lareira e soprou, como quem beija, os dedos queixosos.
Agora interpôs a ponta do avental
e pegou na velha panela pela asa de mão firme e levou-a dependurada até ao remendo
de lajedo, da ponta da varanda, colocado ali porque na invernia o vento sempre
borrifava o madeiramento perecível. Na outra mão o balde de latão, a equilibrar
a carga, com uma amostra de farelos de centeio e restos de água fria no fundo.
Esperou o que viria.
A leitoa já tinha sido desaugada àquelas
horas do dia, mas como era um bom garfo nunca dizia que não a mais um pouco.
Medrava a olhos vistos! Até luzia aquele lombo bonito, o crescimento arreganhava
em pele avermelhada por entre os pêlos russinhos de uma alvura de linho.
Na pontinha do beiral do telhado,
de telha de caleiro ressequida e carcomida, estava imóvel a gata da casa:
rodilha ao sol, de olhos semicerrados fingindo que dormia.
O Cabo dobrou a esquina
abeirou-se e da rua, sem perder a pose, lançou a saudação:
--Bom dia, minha senhora!
--Bom dia senhor Cabo! Por acaso
até estava a ser e, … espero que assim continue.
Naquela forte tensão as palavras
foram saindo temerosas como passinhos de criança, enquanto, latejavam as veias,
onde corria o sangue, a rebentar.
-- Ter a guarda à porta de casa não pode ser
coisa boa.
-- Engana-se. A guarda só combate
o mal! O esposo está? Encontramos uma coisa que lhe pertence e como compreende
quem acha o perdido tem a obrigação de o restituir a seu dono.
-- E que foi que meu marido perdeu?
Por momentos pensou que traziam
nas mãos a espingarda e preparou-se, por instinto, a dizer que esta não lhe
pertencia. Arma era coisa de casa rica e, por isso, era coisa que ali não havia.
--Em breve saberá. Mas ele está
ou não? Chame-o aí! Disse em tom instigante.
-- Deixe-se o senhor Cabo de rapapés! Se é
dele também é meu. Venha de lá o que for que eu direi se nos pertence.
As palavras foram-se tornando
destemidas a sair da boca. A ousadia e fereza maternal da mulher do campo dona
da casa, a quem os homens chamavam de patroa, começava-se a ouvir nas palavras
e a ver nas maneiras.
--O que trazemos é coisa boa e queremos
que seja ele a recebê-la.
Sem dilações, porque a manhã já
ia alta, queria o cabo responder com cautelas matreiras. A manha do cabo, instruída
na formação, tinha sido aprimorada por muitos anos de serviço e, também, pelos casos
que já lhe tinham passado pelas mãos. Usava uma astúcia melosa que vinha,
ainda, urdida por dedadas de fingimento.
Enquanto isso o guarda a dois
passos, tapado pela parede que lhe fazia sombra, estava atento à ordem que
viesse, mantendo a Finura da Magreza na ponta do fiador trela.
A criatura postada tudo ouvia, parecia
porcelana angélica sentada em jardim e, assim assistia de olhar inocente sem
perceber, ainda muito bem, o que estava ali a fazer. Temia este guarda era
temperamental, abrutalhado e de maus fígados, e, tinha a biqueira da bota
sempre à mão.
O outro guarda, que o seu focinho
via do lado contrário da casa, hoplita de atalaia, era dócil e sábio. Pensou nele
com saudade lembrando-se que enquanto estiveram juntos ele, do nada, arrancava conversas
profundas e libertava pensamentos sem tamanho:
“— Vês lá no alto o sol que
brilha intensamente e tudo alumia na sua grandeza maior. É o astro rei, mas sabes,
só alumia meio mundo de cada vez, porém a luz da bondade humana alumia o mundo
todo, a todo o tempo, seja de noite ou de dia. A Bondade é o sol maior da
humanidade!” Rematava e de seguida remetia-se a um silêncio profundo e esmorecido
a pensar coisas e loisas Não havia crueldade nem ódio naquele coração…
O cabo continuou a argumentar
construindo frases curtas com palavras certeiras e cautelosas que tirava do
saco da astúcia para farpear num jogo racional.
--A guarda peleja pelo bem, minha
senhora! Posso afastar a porta? Acrescentou.
-- Se peleja muito mais aleija! Ripostou.
Não lhe respondeu ainda, e, também
não lhe ocorreu, no instante, arrumar outras palavras pois, não queria
ensarilhar-se em tropeções que o Cabo aproveitaria.
Respondia da varanda escorada na
experiência da vida entranhada na alma e no corpo. Era uma mulher pequena de
ancas reboludas, --sensualidade aplainada pelas vestes--, num corpo de pouco
unto, servida de peito mediano, vivendo e labutando em afazeres sem fim. A casa
nunca dava descanso estava sempre cheia de obrigações e de bocas a quem matar a
fome.
O cabo fez-se desentendido
encostou-se e entreabriu a porta do quinteiro, feita de intervalos, tábuas e
ripas enrugadas.
-- Deixe-se de coisas e chame lá
o seu marido, que temos aqui a companheira dele para lhe devolver!
Recebeu a paulada! E, pensou:
“Malandros! Sempre é a espingarda, aquilo deixou-a para trás na corrida ou, foi
escondê-la e eles viram-no.” Relembrou-se, estribou-se e apressou-se a dizer o que
ele lhe tinha dito que dissesse e nada mais.
-- O meu homem foi à missa senhor!
-- Com que então foi à missa! Já nos
podia ter dito.
Para disfarçar o nervoso, que
começava a conquistar terreno por dentro, engoliu em seco inventou tarefas que
tinham sido pensadas antes da guarda chegar. Tirou o testo à grande panela de
ferro, de três pés, e colocou-o com a asita para baixo e o côncavo húmido para
cima para não apanhar a sujidade que se colava à humidade.
De imediato explodiu uma baforada
de vapor. Fogueou no ar uma lufada, um sopro de nuvem a quem a natureza deu as
alturas como trono. Guinou o pescoço e arredou a cabeça do calor que se
libertava apressado da boca escancarada da panela.
Odores de nabo e de batatas
miudinhas, tudo cozido e recozido, entraram-lhe pelo nariz. Os vapores humedeceram-lhe
o rosto a querer formar gotículas nas pontinhas teimosas e curiosas de cabelos que
se tinham escapado do poupo, e do afago do lenço, para ver quem estava.
Com uma mão na asa e outra no pé
vazou, num gesto mecanizado e rápido, parte daquele entulho esverdeado no balde.
A leitoa recebeu os odores --com o sentido que vê o que os olhos não
veem—levantou-se no cortelho soltando um curto e tremulo grunhido. A mulher,
sem tirar os olhos do que fazia repetiu:
-- Já lhes disse que foi à missa!
--já vamos ver! Trá-la prá qui!
A patroa a tressuar arreceou-se
ao ouvir: “Trá-la prá qui!”. Rodou a cabeça atordoada com o olhar turvo de quem
não quer ver. E, do nada, começou a desenhar-se, rente à parede e à porta, uma
sombra que crescia disforme: primeiro nasceu o corpo mociço e aprumando do guarda
e depois apareceu a Finura da Magreza de cabeça baixa onde dois olhitos medrosos
pontilhavam.
Percebeu logo! Riu-se como nunca!
Gargalhas e gargalhas invisíveis.
Sabia coisa, sobre a Finura da
Magreza, que o cabo nem supunha!
Que alívio! Poisou o balde,
descarregou a tensão do medo e do receio. Ganhou um novo rosto. “--Com que
então é a cadelita!”.
Refugiou-se no silêncio,
escondendo o pensamento, as ideias e as motivações. Pensou e riu-se, de novo,
muito naquele silêncio irónico de gozação.
--Pode abrir… pode abrir, desde
que não ponha um pé dentro, que aqui em casa não entram calças sem o meu homem
estar presente!
(mo. Continua)
DSLC
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