O primeiro susto do nosso correio menino e de outros “Santos”. A trovoada do correio e dos outros; A cabra Gogalha, o boi marelo, o burro russo e, o burro e o menino. Do “ribeiresco” do correio que foi e teve que fazer a caminhada ensopado até aos atrevimentos ou mais acima, descia a água da cor dos sacos que o cegava em atrapalhações, para um lado e para o outro, às apalpadelas e repelões e, se um pegava outro largava, que as mãos só eram duas e os sacos meia dúzia, mas ali eram menos. Mas, Santa Bárbara estava lá, mais além se verá!
Corre aos trambolhões empurrada pela sua própria fúria, junta-se, junta-se mais, ganha força na ribeira de Toubres, encorpa-a a do Piosêlo, rebola cega em busca de passagem, desgasta, rola, encontra a de Joanes e engalfinham-se. Bulham vorazes em remoinhos, diluem-se, escapam-se mais que o olhar e as pernas podem. Que força doida aquela! Trovoada que tudo arrastava! Julga-se, sem faltar à verdade, que até os peixes, se a sua natureza o permitisse, procuravam terra firme! Se pela hora da mrenda ou, dai pra diente a experiência da vida lhe pressentia as intensões temíveis, lá prós lados da Garraia com certezas e vontade firme havia que passar tudo, carros, alfaias, animais e gente, para o lado de casa: “- Se bires nubens, mais altas que castelos! Pretas como carbão, a bir, da Garraia, ó pra cá, passa-te com tudo pró lado de cá e, se o trobão bier com força, bens pelos altos, pra casa, põe a gado no monte que a ribeira toma conta do lameiro! Não te esqueças da cabra que gosta de ir despontar pontas!”…. Se a trovoada só deixava cair água lá longe, que corria veloz, e os surpreendia na azáfama remediava-se, deixando lá tudo em lugar seguro: “… Se a troboada nos apanhasse do lado do picoto, e se fosse perto da noite, a troboada já não tinha tempo de correr, deixabamos os bois na curriçe e binhamos passar na ponte com altura de um home ou por ai dum lado embeiçaba na fraga: do lado do Regato, e da Trobisqueira, ainda tinha um bocado de parede do lado de baixo. Do lado do pobo fizeram parede botaram terra pra ter a altura da ponte: tinha um postalete ao meio do ribeiro eram quatro pedras compridas, se calhar com dois metros de comprido, cada uma ou por aí. O trobão mete um bocado de medo!...”
Quem por lá estava, se não tinha curriça onde se abrigar ou não tinha tempo de alcançar abrigo mais distante metia-se debaixo do carro, que era posto em cima da chabelha a pino para dar altura, com pasto em cima para tapar as frinchas. Outros, encostavam-se, fugindo das árvores altas, nas barreiras e paredes para ela não bater com tanta força e aceitavam a rega que lhe lavava a roupa donde corria terra. Dizia-se que um lavrador durante a vida tem que comer sete carradas de terra. Temiam, todos tinham ouvido contar e recontar a história da senhora Laura, do Banho, mulher sofredora como quase todas e avó do nosso correio: “-A Senhora Laura foi prás segadas lá prós lados de Mirandela e estava lá recolhida debaixo dum sobreiro do trobão, caiu a faísca e matou-a! Matou-a! Foi a única que eu me lembre, matou-a! Diz que se fica tição! …” Essa senhora era a avó do nosso “neto” correio. Sim! Atenção! Nosso correio e não correio de Jou. Porque esse era de Murça e, isto faz uma pequena diferença! Mais tarde compreenderão o aparente trocadilho. E, já agora, lanço um desafio: para os CTT, à época, haveria mais interesse em ter o nosso correio ou o correio de Jou? Que como já disse era de Murça. A diferença só não era maior porque um deles mais tarde foi adotado pelo casamento, casou na Granja. Veio não pagou o vinho porque já era o correio de Jou e, também há quem diga, que não pagou porque o queria todo para ele! Se a avó morreu sem conhecer o neto e o neto sem ouvir suas histórias o que é que ele nos conta: “Trovão! Eu, temia imensamente fugia dos pinheiros, porque as pessoas diziam nunca se ponham debaixo de uma árvore, mais daqui e dacolá, eu fugia por atalhos onde não havia árvores e então naquela zona de S. Domingos Batiqueiros quando havia trovão, bom eu tinha a impressão que aqueles dois montes se desmoronavam, o eco era tão grande, eu apanhei sustos enormes do trovão e era a neve e …”, (o nosso correio),
…. “Espere! Espere!... Lembrou-me agora oitra que era mulher do António penato, que era de Ribeira de Pena, era a Maria Freira: estabam abrigados numa currice coberta a laiges, ela e o home, também beu uma faísca, ele escapou, mas ela não. Já me ia esquecendo! Ele diz que foi cuspido pra fora!”… Andanças da vida, uma senhora daqui foi morrer longe e uma senhora de longe veio morrer aqui, todos devíamos morrer na nossa terra. Nenhuma das memórias, escutadas, colocou na minha mais vítimas. Quando a trovoada era valente rangia os dentes nas alturas num estralejar e se vinha em todos despejada a cântaros. Aos animais ensopava os pêlos que se deitavam, como colmo em casa térrea ou palheiro, para proteger o couro. Os animais, esses, pareciam sábios, cada um à sua maneira: parece que a adivinhavam, ou ouviam o restolhar forte e grave das ramagens a ceder naquela fúria, mais cedo que os humanos e, afastavam-se do ribeiro pra borda do monte protegidos. O problema é que não vinham para o lado certo se não estivessem fartos! Com a chuva todos ficavam preguiças, só a cabra ainda Godalha, que era assustadiça, tremendo a cada bater das castanholas metálicas, se mantinha gulosa e lampeira, ainda queria aproveitar a falta de vigilância e, se repreendida: - Godalha! Lançava uns arremedos meigos que condoíam e vinha comer migalhas de bola salgada que mimo, lambia todos os calos na busca.
O boi marelo que obedecendo ao bandulho aproveitava o tempo e logo, logo, ruminava. Ruminava, porque enquanto se pasta não há tempo para mastigar é ceifar e embandulhar e, lá se punha de rabada para a chuva se esta tinha direção. Olhava-o. Olhávamo-nos. Pelo seu olhar melancólico e sério, elaborava pensamentos profundos difíceis ao meu entendimento. O burro russo ficava-se imóvel, talvez que como burro pensasse: se me mexo apanho a chuva que cai aqui e a que cai acolá, e ficava-se de cabeça caída e orelhas derrubadas a proteger os olhos adormecidos. A chuva vinha com força lavar-lhe as chocas e refrescar-lhe, a seu gosto, as esfoladelas da albarda. Ao mesmo tempo o seu colega de escola, de que não sei batismo, montada de criança, debatia-se na enxurrada, no termo da freguesia de Valongo, a ribeira já vinha cheia e a encher cada vez mais, o correio não podia parar, havia contrato firmado, e os dois companheiros de jornada sabiam-no. Se não chegasse, a horas, o de Murça dizia, Jou sabia, e a criança comia. A criança temia o alimento e, ambos temiam o ribeiro. A criança a tremer e o burro a temer a água que lhes roubava a valentia, logo a água, que os burros até a sentem pelo u! “… então enxurradas, quando chovia no verão aquelas grandes trovoadas, e pá eu chegava á frente da ribeira e não conseguia passar, tinha que sei lá …”, (o nosso correio). Encorajavam-se um ao outro, já eram velhos amigos, mesmo íntimos de tanto viver partilhado. Se ficassem ficavam os dois… Já não se via o fundo mas a esperteza do burro sabia onde estava o carreiro até sem olhos, apalpou o terreno com as patas da frente e meteu-se á água com receio, - a criança tinha puxado as pernas para cima e agarrava-se que nem gato- avançava torcia-se contra a corrente, que lhe tocava o fole e, a esforço intenso de tropeção solavanco e peido escapado de medo e esforço asinino, que se desculpou, com um ninguém ouviu. Passaram aquele mar! A criança desmontou, o burro escorria mais, fez-lhe uma carícia nas bentas acima do focinho. Fez-se homem, e pensou: meu querido burrinho, merecias um rebuçado!
Notas:
Godalha- cabra nova e muito irrequieta marelo – de cor acastanhado; mrenda- corruptela de merenda; adientre- Corruptela de adiante; Bires- Os Bb e os Vv são usados de forma indiferenciada; Currice ou curriça- Curral, junto aos campos de cultivo, destinado a recolher gado e se necessário alfaias; Chabelha- Peça de pau que se mete no cabeçalho do carro e que se põe, na vertical, debaixo da sua ponta para poupar os rins de quem põe os boia ao carro; Chocas- Madeixas de pelo agarrado pela sujidade. Bentas – cara do animal, ou de alguém a quem se quer mal: “levas um murro nas bentas”!
Muito, muito bom!... Habemus escriba!
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