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    sexta-feira, 15 de março de 2013

    “O Correio” das terras de Jou (IV)

          A malhada molhada, os dentes da cabra Godalha e a Palavra montada.

    A trovoada já se anunciou lá no alto, noutros lugares, por cima dos montes mais altos onde as fragas, que já viram muito, mostram os dentes careados pelos renitentes musgos, sem idade, que teimam e persistem.

    A Dona Maria, mondadeira, trabalhadeira queria aproveitar tudo - pensou no marido que cuidava da vinha mais acima, olhou as suas borregas, alvas de lã carinho, presas na lameira[1]com vaidade de tratadora e murmurou como quem reza.

    -Estão mesmo bonitas! Mas já não tenho tempo de as soltar p’rá curriça[2].

    A natureza não é traiçoeira e, quando a coisa é grave avisa muito e bem alto. Ninguém pode dizer que não ouviu. Ouvia-se troar e via-se lustrar mas o ser humano é obstinado na teima pelo pão. Uma voz já cansada levanta o chapéu e coça a cabeça suada com desenhos do pó da eira, olha como quem lê sinais e palpita, busca forças pra vencer o motor e lança o alerta:

    “-Ó rapazes! Olhai que ela vem lá, é melhor parar!

    - Então agora vamos parar a malhada!?

    - Lá para riba está muito escuro! Olhai aquelas nubens além, por cima dos montes. Ela, bai cair! Ai bai bai! “

    O alerta foi ouvido por todos menos pelo cacho de crianças alegria, que espreitava quase deitada, debruçada, sobre o muro, e o motor e a malhadeira naquele arfar. Estavam maravilhados!

    Mas nem ouviram, por inteiro, o som do primeiro trovão, foram-se que nem ratos espantadiços, batendo, com os pés descalços de anjo, no pó da rua, prestes a receber os pingos espessos e dispersos do sinal, que vinha como um batedor. Saltitaram escaleiras, gatinhando pequenez, fecharam portas com buraco de gato, procuraram colos maternos, de avental e saia grande e grosseira e, ficaram-se de olhar inquieto no seu ninho de carinho, lareira e escano.

     Entre eles, uma menina pequenina, senhorinha, borboleta de banzo em varanda, parecia acenar, com leveza, ao vento que passava mas assustada… recolheu-se e atrás de si a porta da varanda foi trancada. Havia sempre uma menina que se fazia sonho de menino.

    E, a voz da experiência voltava:

    “ Rapazes o trobão da tarde é o demónio, está tão escuro que quando começar a cair até faz fumo. Não bedes que está a ficar escuro em toda à roda!

    - Também não será tanto assim, então agora vamos parar a malhada! Eu até já prometi p’ra outro!...”

     De repente ouve-se um restolhar apedrejado logo ali…

     O lado de lá do rio ficou rapidamente cercado e começaram a cair as primeiras pedras de água na eira. O Sr. Clara soltou uma palavra:

    - Moinho!

    Atirou com as ganchas sem se importar p’ra onde, fugiu da malhada, voou-lhe o chapéu de palha pelas costas, passou por onde pode e foi, com a intenção de se pôr entre o seu moinho e a trovoada medonha… ficou toda a gente, numa corrida de vai e vem atrapalhada!

    Deitaram a mão ao que puderam “às pressas”:

    O enfornador empurrou o último molho, da mesa, para a boca da malhadeira que o engoliu apressada, tapa-a e, apeia apressado do casulo. Os homens arrastaram os sacos cheios de centeio p’ra debaixo de telha, outros cobriram a meda do pão por malhar com palha numa bota, bota, apressado. O do motor tapou-o com uma folha de latão amolgada toda contorcida e suja de óleo, as mulheres guardam as mantas e os sacos vazios e mais coisas miúdas e salvam todos com preces….

    O Clara já lá vai no fundo a bulhar com o ribeiro…corre, vai à frente da cheia e chegando onde o moinho vai beber, rebola uma pedra, p’rá levada, tão grande coma a sua força.  



    Os perigos da natureza são leais e justos tratam todos por igual, mas há outros igualmente temidos, um deles era a Palavra sabida e, os dentes da Godalha, que estava destinada a ser a leitaria da casa, lembraram-me um conto.

    O seu leite servia para sustento dos canalhos[3]que depois de fartos ficavam com o beiço pintado do gretado do leite, mugido e bebido pela carocha[4]que amolecia. Desfazia-se nos dedos de ensopada e, era repartida irmãmente.  

    Ela esbarrondava-se sobre a terra em cachão, esgalhava, derrubava, ouvia-se a súplica dos objectos em turba e os gemidos das árvores.

     Enquanto O Clara corre, os da malhada fazem contas à vida, a Dona Maria mondadeira afastava-se da porta e a trovoada parece tomar conta de tudo.

    O conto!? Está bem, vou recontá-lo:

    Viajava a Palavra de “altíssimo” em cima do seu cavalo, para as bandas da Freguesia de Tresminas, para participar num ofício. Já no termo das terras de Jou passou por um pastor espigadote que não o tratou com a deferência a que estava acostumado e a qual julgava ter direito.

    Parou a montada bruscamente e disparou uma pergunta:

    -Tu de quem és moço!?

    Não obteve resposta, pois, o pastor espigado pressentiu o perigo na pergunta e não respondeu, nem se aproximou, nem um pouco, sempre convencido que a Palavra não desmontaria. O receio fê-lo puxar mais a cabeça, que se encolheu, para dentro da boina de orelhas, surdas.

    A Palavra fincou o olhar de frente e continuou:

    Parece que não te tenho visto na igreja! Tu vais à missa? Sabes a religião?

    -Sei o Pai Nosso. Respondeu, como cristão, depois de uma pausa breve e longa, o pastor receoso.

    -Mas, isso é muito pouco! Tens que saber toda a religião!

     Não obteve resposta. E a Palavra continuou a falar de cima do cavalo:

    - Fizeste a crisma?

    O jovem pastor mudo e quedo, queria fingir que tinha que ir virar o gado para se afastar, mas aquilo era tudo mato… e, também não havia meio do cavalo levar a Palavra para bem longe!

    -Parece-me que tu não sabes nada da religião!?

    Não havia meio da Palavra se calar e, perguntou de novo:

    -Tu de quem és filho?

    O pastor inquieto pensou: se ao menos o cavalo se mexesse e o olhar se desviasse daqui, eu dava um salto para longe.

    -És surdo, ou ficaste mudo? Quem são os teus pais? Responde? Voltou a Palavra.

    O animal do campo viu-se ali encurralado, naquele descampado, pela Palavra que falava de cima de um cavalo. E, um animal do campo quando muito encurralado, sem linha de fuga, ataca sem olhar às consequências, ganha coragem e ataca.

    Soltou a voz que estava presa, empertigou-se nas suas fracas forças que se tornaram grandes, e zás!

    -O senhor sabe quantos dentes tem uma cabra?

     A Palavra calou-se por momentos e pensou sem nada dizer…

    -Dentes? Dentes…

    O animal atacado agora mais senhor de si, com uma ponta de vaidade e troça, acrescentou:

    -Dentes!... E… acrescentou. Em cima?

    A Palavra sentiu a pancada astuciosa do cajado. Ficou muda a matutar naquela pergunta. Que pergunta aquela! E nada, não havia tal sabedoria naquela Palavra altiva!

    Agora até a ajuda da montada era bem-vinda mas esta estava impaciente pois tinha mais em que pensar e estava no seu mundo.

    A palavra olhou em volta mas ali não havia mais vivalma. E Deus, que está em todo o lado, não estava disponível para tais caprichos.

    Não teve outro remédio a não ser dar esporas ao cavalo, testemunha inocente, que mordeu o freio.

    Valeu ao pastor não ser cordeiro de ovelhas do seu rebanho.

     É caso para dizer:

    -Cada um sabe da sua religião! Ou melhor ainda, do seu Ofício!



    Dinis Serôdio Lopes da Costa

    (mo-Continua (V))








    [1]Lameiro fraco
    [2]Casa abarracada, no meio do monte, destinada a recolher gado ou alfaias agrícolas e para abrigo das pessoas.
    [3]Meninos sem tal estatuto
    [4]Primeira fatia do pão em forma de calote a quem, no campo, era tirado miolo para servir de púcaro.
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