• Nós por Cá

    sábado, 28 de março de 2015

    A caçada, um guarda em apuros, março 2015



     O barulho, de quem passava, parecia rebolar-se, rarefazendo-se num rumorejo morredouro ao fundo.
    Reconfortado o corpo, pelo alívio da bexiga, preparava-se para regressar ao seu posto de vigia e espera. Soltou a magreza da Finura e, nem teve o ensejo de dar o primeiro passo, sentiu a tenção do fiador por entre os dedos. A Finura, respondendo aos seus instintos emitiu um gemido quase impercebível e de orelhas espetadas no cocuruto da cabeça em focinho doninha, dava sinais certos de que havia coisa para as bandas de cima. Não havia pêlos espetados no fio do lombo. Bicho não seria!
    A mensagem, da entendida, intrigou-o: "Como podia ser se o barulho de quem passou tinha morrido em baixo ? ". Ficou confuso. A preocupação que trazia sobre os ombros, num instantinho, encaminhou-lhe os raciocínios todos: " Será que o caçador veio na nossa peugada e, agora, continua ali alapado para nos vigiar os movimentos ou ainda para libertar a Finura? Trará a caçadeira na unha? Será muita afoiteza e, muito pouca vergonha!"
    Enfrentou a estranheza, havia que indagar, teria que o levantar dos pequenos remendos de mato que vestiam a encosta. Como autoridade não podia agir de outra maneira! Estremeceu carregado de impulsos contraditórios: retirar-se; Ir ao encontro do suposto, ou ficar-se como desentendido. Indeciso decidiu fazer frente ao suposto, como guarda não se podia engrunhar. Reverberou uma praga, contra a vida e contra o mundo, por estar ali só. Porém, baixou-se a olhar para o ralo bosque em indagação. Afagou a Finura da magreza e ordenou-lhe, sem palavras, quietude. A cativa nervosa e vibrante encolheu-se levemente quedando-se numa obediência colaborante. Pois, se no primeiro encontro dominá-la era trabalho para beluário agora já eram quase amigos. Tinham acabado de expor as suas fraquezas sem pudor.
    O seu esguio corpo, hirto de atenção, repetia-lhe os sinais. Havia coisa! Se dominasse a linguagem dos humanos ter-lhe -ia  dito, sem tirar nem pôr! Olhava-a enquanto os seus sentidos tensos e atentos, registavam uma  leve brisa que se fez e refez, nas repas tenras das ramagens adejantes a querer florir. Sentiu-a refrescante mas deixou-a passar, pois infelizmente também não tinha artes de anemonancia para ler os seus sinais.
    Afagou a Finura docemente enquanto a amarrava a uma raiz agonizante que se retorcia rija resistindo. Pegou a espingarda com uma mão, pôs uma orelha em riste, ampliou-a com o côncavo da mão livre e escutou em silêncio o melódico campestre. Ouviu um ruído mínimo, uma levíssima crepitação de guiços pisados. Estremeceu primeiro, depois encheu-se de coragem e muito lentamente com a espingarda apontada na direção do ténue ruido, a querer ir e a querer ficar, curvou-se, quase de gatas, qual gato caçando.
    Foi progredindo procurando as lajezinhas , evitando sempre a aspereza dos lesins e das arestas que sentia na carne. Avançou, pelos intervalos, carregado de cautelas num contorna aqui, imobiliza, mira ali, recebe chicote do mato, no olhar, acolá, espreita mais além, tudo com a bravura necessária para vencer o receio que se manifestava. Palpitavam-lhe as artérias. Escutava a respiração estropiada a arfar. Parava de orelha à escuta. Ora lhe parecia que ouvia um rocegar ora não. Desassossegado porque sabedor de que quem caça de espera tem vantagem--este era arteiro--, o que lhe reforçava as premonições e os palpites ruins e arrojados:
    "Não me posso deixar surpreender na mira dos canos antes perder a vida, se necessário for, que deixar que me leve a espingarda seria o meu fim." Entrementes, numa pausa, ainda lhe acorreu ao pensamento uma ponta de vaidade. " Se eu o apanhasse desprevenido e lhe filasse as algemas, no presunho, seria um herói! Com a sede que o Cabo lhe traz o louvor estaria certo!"
    Resoluto, armado de toda a suspicácia e cautela arrastou-se um pouco mais e, entremostrou-se-lhe, além, o que parecia ser um vulto humano, da cintura para cima. Estava de costas para o mato e para si. O vulto levou-lhe toda a atenção deixando, por isso, de inspecionar o aquém. Aproximou-se mais e, mais cauteloso ainda arrojou-se. Como era possível? Pareceu-lhe uma moça! Uma donzela madura! Mais um instante e pelos leves movimentos, dos cabelos penteados, confirmou. Parecia-lhe plantão que guardava, com uma expressão de quem espera. Inquieta rodou o corpo num olhar sobre o ombro.
    Num relâmpago, espelhou-se-lhe, aquele rosto de moçoila trigueirinha! Teve um baque! Bloqueou todos os movimentos descoroçoado enquanto pensava apressado a querer agir célere. Percorrendo, em ansiedade, os arbusto que lhe ficavam na ponta do nariz minuciosamente, primeiro este depois aquele. "Uche! Porra!" Atónito viu o que supunha. Ficou retesado, como corda de arco armado. "Porra dialhos pra isto!" Acrescentou sem o dizer "Como é que eu não vi isto antes? Que cabeça a minha, fui pensar que era o caçador! O caçador coitado!"
    É bem verdade que, por vezes, as nossas suposições nos enganam e um pensamento mal calculado atravessa-se no nosso entendimento. Há cada uma, parece armação do diabo! Coisas do arco-da-velha!...
    "Estou prá qui bem encalacrado, nem me posso bulir. Como saio desta embrulhada?" Varado de preocupação deitou, com cuidados, a espingarda a seu lado. "Para o que me havia de dar, pensar que o homem estava ali! Pensando melhor o que ele quererá, pela certa, é ver a guarda bem longe!"
    Todos sabemos, todos não, o guarda não sabia, que o caçador que tinha avançado com o pé direito na primeira escaleira das escaleiras, no pretérito, no presente já estava com os dois pés nas tábuas da varanda embezerrado a olhar, apreensivo, o burro que no quinteiro batia as patas, qual calceteiro, para enxotar as moscas, porque a natureza lhe deu um rabo tão curto, para aquele tamanho de corpo, que mais parece um enfeite!
    Que remédio ficou-se a olhar para o vazio e, mesmo assim desinteressadamente apesar de toda a garridice e jovialidade acocorada à sua frente, certo de que aquele não era o seu alvo e, de muche, à anos que estava servido. Por não ter o dom da presciência e supor o errado, estava metido numa enrascada onde nenhum movimento lhe seria prudente: avançar nem pensar, voltar para o ponto de partida seria o mais desejável mas qualquer movimento denunciá-lo-ia, ficar imóvel sem olhar pareceu-lhe o mais aconselhável.
    A esforço rodou lentamente a cabeça, de corpo colado ao chão, dando ao pescoço um movimento de seitoira, do punho ao bico.  Conseguiu olhar a Finura de magreza, uns passos mais abaixo, que lambia num vaivém, metódica e pacientemente, uma pata com a língua em colherinhas de chá.
    Persentindo que se lhe dirigia interrompeu os cuidados e sentou-se, sobre as patas traseiras, atenta. Respondeu-lhe com o seu olhar vivo de uma comovedora candura : "Vez! Vez! Como eu tinha razão, em dizer que aí havia coisa."
    Retorquiu-lhe: "Pró caso melhor teria sido que fosses fraca de faro e de orelha."
    Regressou o olhar, deu uma voltinha sem ponta de lascívia, e anilhou-o junto ao corpo. Ficou-se a sugar a farda naquele escarmento. " Que fazer? Tenho que ustir! Não me podem ver: Se sou visto em retirada é porque estive a espreitar. Se me vêm, nesta postura, é porque espreito. De uma forma ou de outra seria uma grande vergonha. Como é que se explicava uma coisa destas? A desculpa do caçador seria entendida como esfarrapada e, até , daria lugar a chacota da corporação!"
    Esperou sem uma pinga de instinto lúbrico. Voltou a esperar, quedo e mudo, em apoquentação. Pareceu-lhe um ror de tempo. "O que diriam as bocas do povo? Olha o homem atoleimado com mulher em casa e filhas, que já namoram, a espreitar as mocinhas! A valer-se da farda, o ujo!?"
    Recorreu a Santo Antão que tinha nicho perto, porque isto eram coisas do demónio!
    Estava muito, muito perto, na tufo ao lado e, se os homens fazem de costas para o mundo, as mulheres fazem-no de frente para o mundo e de costas para as moitas. Estava ali acocorada, quase ao alcance da mão, a regar um sargacinha. Felizmente tinha o corpo de través, fora da mirada certeira.
    Os homens até podiam e podem olhar para os lados, durante o serviço, mas as mulheres que não veem o que fazem mas têm que ver o que estão a fazer porque a nascente nasce logo ali aos pés e à mais pequena distração, o repuxo, pode benzer-lhe a bainha ou a falda, da saia ou vestido, ou aspergir os sapatos pelo meio.
    Alvitra-se que desde o princípio dos tempos usaram saias, com intimidades ventiladas, porque estas até lhes permitiam fazê-lo à homem sem usar as mãos?...
    Levantou-se, subiu o que havia a subir, desceu o que tinha que descer e a escolher o sítio para pôr os sapatitos de domingo e foi-se com leveza.
    Antes não ouviu nada, nem que troveja-se, mas agora não pode deixar de ouvir:
    --"Estava mesmo apertadinha, apertadinha! Tinha que ser antes do pobo é que depois ainda bamos rondar a Cima de Bila ao comércio do Zé Nible.... Era muito tempo."
    --"Vamos depressa que ainda as apanhamos a passar o Rio."
    Tão ligeirinhas e mais asseadinhas ainda, foram aqueles corpos a cantarolar sensualidades coloridas espalhando graça no encalço do grupo. A felicidade era tanta que nem cabia no apertado das barreiras e paredes tortas de pedra deitada, ensopadas de turrões onde as pequeninas flores púrpuras se alimentavam a anunciar a primavera.
    As que iam à sua frente, a ensinar-lhe o caminho, tinham ido a deslizar de passinhos curtos, também leves e graciosos, olhando em arrecuas torcidas, para quem ficou e já lá vinha, ... esperaram numa rodinha tagarela entremeada de risinhos felizes.
    [O edílico dos lugares refugiou-se nas nossas memórias como relicário. Pois, calcorrear no presente os caminhos, que foram e são nossos, é vazio, solidão e abandono onde falta o colorido da alegria da juventude!]
    (mo continua)

    DSLC
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