O barulho, de quem passava, parecia rebolar-se, rarefazendo-se
num rumorejo morredouro ao fundo.
Reconfortado o corpo, pelo alívio da bexiga, preparava-se
para regressar ao seu posto de vigia e espera. Soltou a magreza da Finura e,
nem teve o ensejo de dar o primeiro passo, sentiu a tenção do fiador por entre
os dedos. A Finura, respondendo aos seus instintos emitiu um gemido quase
impercebível e de orelhas espetadas no cocuruto da cabeça em focinho doninha,
dava sinais certos de que havia coisa para as bandas de cima. Não havia pêlos
espetados no fio do lombo. Bicho não seria!
A mensagem, da entendida, intrigou-o: "Como podia ser se
o barulho de quem passou tinha morrido em baixo ? ". Ficou confuso. A preocupação
que trazia sobre os ombros, num instantinho, encaminhou-lhe os raciocínios todos:
" Será que o caçador veio na nossa peugada e, agora, continua ali alapado
para nos vigiar os movimentos ou ainda para libertar a Finura? Trará a
caçadeira na unha? Será muita afoiteza e, muito pouca vergonha!"
Enfrentou a estranheza, havia que indagar, teria que o
levantar dos pequenos remendos de mato que vestiam a encosta. Como autoridade não
podia agir de outra maneira! Estremeceu carregado de impulsos contraditórios:
retirar-se; Ir ao encontro do suposto, ou ficar-se como desentendido. Indeciso
decidiu fazer frente ao suposto, como guarda não se podia engrunhar. Reverberou
uma praga, contra a vida e contra o mundo, por estar ali só. Porém, baixou-se a
olhar para o ralo bosque em indagação. Afagou a Finura da magreza e
ordenou-lhe, sem palavras, quietude. A cativa nervosa e vibrante encolheu-se
levemente quedando-se numa obediência colaborante. Pois, se no primeiro
encontro dominá-la era trabalho para beluário agora já eram quase amigos. Tinham
acabado de expor as suas fraquezas sem pudor.
O seu esguio corpo, hirto de atenção, repetia-lhe os sinais.
Havia coisa! Se dominasse a linguagem dos humanos ter-lhe -ia dito, sem tirar nem pôr! Olhava-a enquanto os
seus sentidos tensos e atentos, registavam uma leve brisa que se fez e refez, nas repas
tenras das ramagens adejantes a querer florir. Sentiu-a refrescante mas
deixou-a passar, pois infelizmente também não tinha artes de anemonancia para ler
os seus sinais.
Afagou a Finura docemente enquanto a amarrava a uma raiz
agonizante que se retorcia rija resistindo. Pegou a espingarda com uma mão, pôs
uma orelha em riste, ampliou-a com o côncavo da mão livre e escutou em silêncio
o melódico campestre. Ouviu um ruído mínimo, uma levíssima crepitação de guiços
pisados. Estremeceu primeiro, depois encheu-se de coragem e muito lentamente
com a espingarda apontada na direção do ténue ruido, a querer ir e a querer
ficar, curvou-se, quase de gatas, qual gato caçando.
Foi progredindo procurando as lajezinhas , evitando sempre a
aspereza dos lesins e das arestas que sentia na carne. Avançou, pelos
intervalos, carregado de cautelas num contorna aqui, imobiliza, mira ali,
recebe chicote do mato, no olhar, acolá, espreita mais além, tudo com a bravura
necessária para vencer o receio que se manifestava. Palpitavam-lhe as artérias.
Escutava a respiração estropiada a arfar. Parava de orelha à escuta. Ora lhe
parecia que ouvia um rocegar ora não. Desassossegado porque sabedor de que quem
caça de espera tem vantagem--este era arteiro--, o que lhe reforçava as premonições
e os palpites ruins e arrojados:
"Não me posso deixar surpreender na mira dos canos antes
perder a vida, se necessário for, que deixar que me leve a espingarda seria o
meu fim." Entrementes, numa pausa, ainda lhe acorreu ao pensamento uma
ponta de vaidade. " Se eu o apanhasse desprevenido e lhe filasse as
algemas, no presunho, seria um herói! Com a sede que o Cabo lhe traz o louvor
estaria certo!"
Resoluto, armado de toda a suspicácia e cautela arrastou-se
um pouco mais e, entremostrou-se-lhe, além, o que parecia ser um vulto humano,
da cintura para cima. Estava de costas para o mato e para si. O vulto levou-lhe
toda a atenção deixando, por isso, de inspecionar o aquém. Aproximou-se mais e,
mais cauteloso ainda arrojou-se. Como era possível? Pareceu-lhe uma moça! Uma
donzela madura! Mais um instante e pelos leves movimentos, dos cabelos
penteados, confirmou. Parecia-lhe plantão que guardava, com uma expressão de
quem espera. Inquieta rodou o corpo num olhar sobre o ombro.
Num relâmpago, espelhou-se-lhe, aquele rosto de moçoila trigueirinha!
Teve um baque! Bloqueou todos os movimentos descoroçoado enquanto pensava apressado
a querer agir célere. Percorrendo, em ansiedade, os arbusto que lhe ficavam na
ponta do nariz minuciosamente, primeiro este depois aquele. "Uche! Porra!"
Atónito viu o que supunha. Ficou retesado, como corda de arco armado.
"Porra dialhos pra isto!" Acrescentou sem o dizer "Como é que eu
não vi isto antes? Que cabeça a minha, fui pensar que era o caçador! O caçador
coitado!"
É bem verdade que, por vezes, as nossas suposições nos
enganam e um pensamento mal calculado atravessa-se no nosso entendimento. Há
cada uma, parece armação do diabo! Coisas do arco-da-velha!...
"Estou prá qui bem encalacrado, nem me posso bulir. Como
saio desta embrulhada?" Varado de preocupação deitou, com cuidados, a
espingarda a seu lado. "Para o que me havia de dar, pensar que o homem
estava ali! Pensando melhor o que ele quererá, pela certa, é ver a guarda bem longe!"
Todos sabemos, todos não, o guarda não sabia, que o caçador
que tinha avançado com o pé direito na primeira escaleira das escaleiras, no
pretérito, no presente já estava com os dois pés nas tábuas da varanda embezerrado
a olhar, apreensivo, o burro que no quinteiro batia as patas, qual calceteiro,
para enxotar as moscas, porque a natureza lhe deu um rabo tão curto, para
aquele tamanho de corpo, que mais parece um enfeite!
Que remédio ficou-se a olhar para o vazio e, mesmo assim
desinteressadamente apesar de toda a garridice e jovialidade acocorada à sua
frente, certo de que aquele não era o seu alvo e, de muche, à anos que estava
servido. Por não ter o dom da presciência e supor o errado, estava metido numa
enrascada onde nenhum movimento lhe seria prudente: avançar nem pensar, voltar
para o ponto de partida seria o mais desejável mas qualquer movimento
denunciá-lo-ia, ficar imóvel sem olhar pareceu-lhe o mais aconselhável.
A esforço rodou lentamente a cabeça, de corpo colado ao chão,
dando ao pescoço um movimento de seitoira, do punho ao bico. Conseguiu olhar a Finura de magreza, uns
passos mais abaixo, que lambia num vaivém, metódica e pacientemente, uma pata
com a língua em colherinhas de chá.
Persentindo que se lhe dirigia interrompeu os cuidados e sentou-se,
sobre as patas traseiras, atenta. Respondeu-lhe com o seu olhar vivo de uma
comovedora candura : "Vez! Vez! Como eu tinha razão, em dizer que aí havia
coisa."
Retorquiu-lhe: "Pró caso melhor teria sido que fosses
fraca de faro e de orelha."
Regressou o olhar, deu uma voltinha sem ponta de lascívia, e
anilhou-o junto ao corpo. Ficou-se a sugar a farda naquele escarmento. "
Que fazer? Tenho que ustir! Não me podem ver: Se sou visto em retirada é porque
estive a espreitar. Se me vêm, nesta postura, é porque espreito. De uma forma
ou de outra seria uma grande vergonha. Como é que se explicava uma coisa
destas? A desculpa do caçador seria entendida como esfarrapada e, até , daria
lugar a chacota da corporação!"
Esperou sem uma pinga de instinto lúbrico. Voltou a esperar,
quedo e mudo, em apoquentação. Pareceu-lhe um ror de tempo. "O que diriam
as bocas do povo? Olha o homem atoleimado com mulher em casa e filhas, que já
namoram, a espreitar as mocinhas! A valer-se da farda, o ujo!?"
Recorreu a Santo Antão que tinha nicho perto, porque isto
eram coisas do demónio!
Estava muito, muito perto, na tufo ao lado e, se os homens
fazem de costas para o mundo, as mulheres fazem-no de frente para o mundo e de
costas para as moitas. Estava ali acocorada, quase ao alcance da mão, a regar
um sargacinha. Felizmente tinha o corpo de través, fora da mirada certeira.
Os homens até podiam e podem olhar para os lados, durante o
serviço, mas as mulheres que não veem o que fazem mas têm que ver o que estão a
fazer porque a nascente nasce logo ali aos pés e à mais pequena distração, o
repuxo, pode benzer-lhe a bainha ou a falda, da saia ou vestido, ou aspergir os
sapatos pelo meio.
Alvitra-se que desde o princípio dos tempos usaram saias, com
intimidades ventiladas, porque estas até lhes permitiam fazê-lo à homem sem
usar as mãos?...
Levantou-se, subiu o que havia a subir, desceu o que tinha
que descer e a escolher o sítio para pôr os sapatitos de domingo e foi-se com
leveza.
Antes não ouviu nada, nem que troveja-se, mas agora não pode
deixar de ouvir:
--"Estava mesmo apertadinha, apertadinha! Tinha que ser antes
do pobo é que depois ainda bamos rondar a Cima de Bila ao comércio do Zé Nible....
Era muito tempo."
--"Vamos depressa que ainda as apanhamos a passar o
Rio."
Tão ligeirinhas e mais asseadinhas ainda, foram aqueles
corpos a cantarolar sensualidades coloridas espalhando graça no encalço do
grupo. A felicidade era tanta que nem cabia no apertado das barreiras e paredes
tortas de pedra deitada, ensopadas de turrões onde as pequeninas flores
púrpuras se alimentavam a anunciar a primavera.
As que iam à sua frente, a ensinar-lhe o caminho, tinham ido a
deslizar de passinhos curtos, também leves e graciosos, olhando em arrecuas
torcidas, para quem ficou e já lá vinha, ... esperaram numa rodinha tagarela
entremeada de risinhos felizes.
[O edílico dos lugares refugiou-se nas nossas memórias como
relicário. Pois, calcorrear no presente os caminhos, que foram e são nossos, é
vazio, solidão e abandono onde falta o colorido da alegria da juventude!]
(mo continua)
DSLC
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